A segunda invasão russa na Ucrânia completou um ano. Desde que se iniciou a guerra, ainda na primeira invasão, em 2014, quando a Rússia tomava a Crimeia, o Ocidente tem acusado Moscou de ser o grande vilão da história, mas não seria o Ocidente um dos fomentadores desta ação russa?
Para uma compreensão mais minuciosa desta guerra, voltemos ao final do século XX. Na última metade deste século havia duas grandes potências mundiais: A URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e os EUA, Estados Unidos das Américas. Como é sabido, após o fim da Segunda Guerra Mundial os EUA e URSS entram no conflito o qual conhecemos como a Guerra Fria.
Durante a Guerra Fria são criados os blocos da Organização do Tratado do Atlântico Norte, em sigla inglesa OTAN, em 1949, e o Pacto de Varsóvia, criado em oposição à Otan em 1955. Ambos os blocos eram alianças militares cuja função era a defesa de seus aliados em caso de ataques vindos do adversário.
Quando terminou a Guerra Fria, houve os acordos de unificação alemã e da dissolução do Pacto de Varsóvia sem oposição russa, mas com duas condições: a Alemanha Oriental não iria se militarizar e a OTAN não traria os países do Pacto de Varsóvia à sua zona de influência. O que não aconteceu. A OTAN tinha somente dezessete membros na sua formação, duas décadas depois passa a ter vinte e oito membros, desses vinte e oito, doze da antiga zona de influência soviética, atualmente o bloco conta com 30 países membros.
Ainda com a desfragmentação da URSS em 15 repúblicas a Rússia surge com grandes problemas econômicos e sociais e, desta forma, desmoralizada no cenário internacional. Boris Iéltsin, então presidente russo, acreditava que o Ocidente faria uma integração de seu país ao mercado internacional capitalista, entretanto aconteceu que o Ocidente optou por tentar isolar e conter a Rússia, em desconfiança ao antigo inimigo.
Desta forma, não somente a OTAN, como acima citado, mas a União Europeia, UE, tentam conter a Rússia através destes blocos.
No século XXI a Rússia ressurge no cenário internacional, com Putin no poder o País volta a buscar reestabelecer influências nestas zonas. O que gerou confronto com o Ocidente.
A partir de 2004 com a nova rodada de expansão da OTAN e da UE, após as revoluções coloridas, em que dois países de fundamental importância para Moscou demostraram interesses em fazer parte das alianças ocidentais, que são a Georgia e Ucrânia, a Rússia começa a reagir aos avanços ocidentais, como por exemplo, com a Guerra da Georgia em 2008, mas voltemos ao caso ucraniano.
Em 2004 Ocorre a revolução Laranja na Ucrânia depois das eleições presidenciais daquele ano. o Ocidente contestou as eleições na qual Viktor Yanukovych ganhou com margem de 3% a mais que o seu concorrente Viktor Yushchenko. O que fez com que ONGs ocidentais se envolvessem em protestos pós eleição. Culminando em novas eleições, desta vez com a vitória de Yushchenko, com 52% dos votos. A eleição foi aceita pelo Ocidente.
Em 2010, em novas eleições, desta vez sem intervenção Ocidental, Viktor Yanukovych volta ao poder, seguindo uma política de aproximação direta com a Rússia, o que fez com que em novembro de 2013 houvesse manifestações, dessa vez os protestos eram para pressionar o Presidente a ter uma maior aproximação com a União Europeia, logo, apoiada por ONGs ocidentais, com o ápice em 2014, evento conhecido como Euromaidan ou Revolução da Dignidade.
Como se pode observar pelos números das eleições a Ucrânia é um país bem dividido politicamente. Existem os pró-russos e os pró-ocidentais. Esta divisão se dá em detrimento da questão histórica do país, origem da própria Rússia explicitada abaixo.
A história da Rússia começa na confederação de tribos eslavas surgida em Kiev, ou como naquela época chamada, Rus de Kiev, ou Rússia de Kiev. O Próprio nome Ucrânia, que vem do eslavo, Krajina, significa fronteira. Esse território foi o limite fronteiriço do Império Russo. Uma parte da Ucrânia esteve há muito tempo sob domínio do Império Austro-húngaro, sendo, desta forma, protestante e Ocidental, e outra parte católica ortodoxa. Se pode notar que a questão nacional ucraniana nunca foi bem resolvida, pois o país sempre esteve em disputas territoriais e só teve sua independência em um curto período no entre guerras mundiais e, de fato, em 1991 após o fim da URSS.
Outra questão chave é que no país 1/3 da população é russa e 2/3 tem algum parentesco com russos ou com a cultura russa. Pode-se perceber que, sendo assim, a Ucrânia surge meio que por acidente, entre dois mundos, dividida em meio a Ocidente e Oriente, dois Povos, russos e ucranianos, e em dois tempos históricos adversos.
Voltando a 2014, a Rússia reage aos eventos da Euromaidan com a anexação da Crimeia. A tentativa de incorporação da Ucrânia à zona Ocidental não poderia ser aceita por Moscou. A Ucrânia é um dos países mais importante para a segurança russa, talvez o principal quando se trata da região europeia.
A percepção russa é de que o Ocidente quer promover reformas em Kyiv contrárias aos negócios russos e agenciar a aproximação ucraniana ao Ocidente, Moscou buscou agir rapidamente para garantir seus interesses na região e reverter as dinâmicas da aproximação da Ucrânia ao Ocidente para tentar consolidar o País na sua esfera de influência nos quais o apoio aos movimentos separatistas no sul da Ucrânia e a anexação da Crimeia em 18 de março de 2014 foram os principais pontos da estratégia russa. Após a anexação da Crimeia, outras regiões ucranianas também tiveram o apoio russo em se separarem da Ucrânia que são Donetsk e Lugansk.
Em 2019, após estas crises políticas e a tensão com o país vizinho, os ucranianos, desacreditados em suas instituições, dão ao comediante Volodymir Zelensky, o cargo de presidente, talvez mais como uma forma de demonstrarem sua insatisfação política que pensando em uma salvação à sua situação. De todo modo, Zelensky anunciou que pediria a Crimeia de volta aos russos, houve até negociação para a situação, entretanto, após a possibilidade de Kyiv fazer parte da OTAN, em 2022, no dia 20 de fevereiro a Rússia volta a adentrar territórios ucranianos.
Para a Rússia, como acima citado, a Ucrânia é fundamental para a segurança deste país. Um exemplo desta importância é a de que o país já foi invadido 4 vezes através da Ucrânia: Os poloneses em 1605, os suecos em 1707, os franceses de Napoleão em 1812 e os Alemães na Primeira Guerra Mundial. Pois em se tratando de acesso terrestre à Rússia, no qual existe a Grande Planície Europeia, que se encontra desde o litoral ocidental da França até os Montes Urais na Rússia. Todo esse percurso pode ser facilmente percorrido sem ter que cruzar fronteiras naturais tais como rios, montanhas ou desertos, facilitando assim a penetração no território russo.
Desta forma, percebe-se que caso a OTAN tenha acesso ao território ucraniano terá também fácil acesso ao território russo. Moscou ficaria a pouco mais de 600 Km de distância.
Diante do exposto acima pode-se aferir que estas atitudes da Rússia podem ser vistas mais como uma reação à penetração Ocidental na antiga zona de influência russa, assim, entende-se que esta guerra não pode ser vista como uma política expansionista, ou um neocolonialismo, ou uma continuação da Guerra Fria, como muito se tem falado, mas como uma reação à tentativa do Ocidente de isolar a Rússia, ou seja, para a Rússia esta é uma forma de conter o avanço da OTAN e UE, em uma visão realista, o país busca se manter vivo frente a este isolamento.
A Guerra na Ucrânia está para além de uma visão maniqueísta da qual se trata o ocidente como sendo o sumo bem e a Rússia como a grande vilã da história. De fato, as atitudes tomadas pela Rússia em invadir um país soberano não podem ser aceitas como legitimas, entretanto, não perceber a complexidade da Guerra torna o Ocidente isento de sua parcela de culpa.
Genildo Pereira Galvão
Graduado em Relações Internacionais pelo Centro Universitário IESB. Cursou um semestre do seu curso na Universidad Autónoma de Guadalajara, México. Conquistou essa oportunidade em um programa de bolsas do Programa Santander Universidades, no qual ficou entre os 9 selecionados do processo seletivo de 2017. Iniciou uma Licenciatura em História, em 2021, que trancou para iniciar uma em Filosofia que segue cursando. Trabalhou no Ministério da Educação como Analista Jurídico Júnior pela THS Tecnologia.
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