A intervenção militar americana em Uganda em 2011 e suas contradições
Desde o fim da Guerra Fria o mundo vive em uma ordem unipolar, na qual os Estados Unidos detêm a maior parcela de influência e poder de decisão. Nos últimos cinco anos, alguns países como Alemanha e Rússia têm se destacado ao se posicionarem de maneira mais participativa, o primeiro como porta-voz econômico do bloco europeu e o segundo ao questionar a atual ordem mundial. Para Mearshemeier (pp.142-3) há na Europa o retorno indesejável retorno da instabilidade.
Desde o fim da Segunda Guerra, governos norte-americanos vêm interferindo na política doméstica dos países nos quais tem interesses econômicos ou estratégicos. A intervenção acontece de maneira direta ou indireta, através do fomento de insurgências.
Muitas vezes o país, para camuflar seus interesses nacionais, usa a bandeira de interventor humanitário. Derruba regimes e garante a influência econômica e militar que buscava. Além das vantagens de contratos, é importante ressaltar que os EUA os dominam também no campo das ideias. Injetando também sua cultura, seus pensamentos e seu modo de vida no dia a dia nas populações.
É possível dizer que a intervenção humanitária é o uso da força de Estado em territórios além de suas fronteiras para a prevenção ou finalização de violações aos direitos humanos fundamentais dos indivíduos (HOLZGREFE, 2003, p.18).
Pode se também afirmar que a intervenção caracteriza-se pela existência de três condições: a imposição da vontade exclusiva do Estado que a prática; a existência de dois ou mais Estados soberanos e ato abusivo, isto é, não baseado em compromisso internacional (ACCIOLY, 2012, p.475).
No direito internacional, trata-se da ingerência de um estado nos negócios peculiares, internos ou externos, de outro estado soberano com o fim de impor a este a sua vontade (ACCIOLY, 2012, p.475).
Mas, seriam as intervenções humanitárias válidas mesmo com a existência de objetivos econômicos ou estratégicos ocultos?
Em outubro de 2011, o presidente Barack Obama enviou 100 soldados com a missão de matar ou prender o líder do Exército de Resistência do Senhor (LRA, em inglês), Joseph Kony. O LRA é um grupo de guerrilha que tenta desde 1987 estabelecer um governo teocrático em Uganda. Kony está na lista dos 10 mais procurados no mundo pela Corte Penal Internacional e é acusado de crimes como o rapto de crianças para montar seu exército, além de incontáveis assassinatos.
Esta era só mais uma intervenção norte-americana. O país soma pelo menos 20 intervenções militares apenas no século XX e esta não seria a primeira vez no continente africano. Entre 1976 e 1992, por exemplo, a CIA ajudou rebeldes da África do Sul na luta contra Angola marxista.
Para gerir o que está acontecendo por lá, os EUA também contam com o Comando dos Estados Unidos para África (Africom), um dos seis quartéis-generais militares regionais do Departamento da Defesa.
Do outro lado, há as propagandas ONGs que apoiaram a intervenção. Foi o que aconteceu com a campanha Kony 2012, da organização Invisible Children. A ONG, fez um filme de 30 minutos com o objetivo de tornar Kony famoso para o mundo todo. A ideia era basicamante pressionar a opinião pública para que as tropas americanas enviadas a Uganda não fossem retiradas. Na prática, aumentar os pedidos ao governo norte-americano para que as tropas continuassem atuando na área.
Para isso, os membros da ONG até manipularam fatos e aumentaram com exagero o número de sequestros e assassinatos cometidos pelo LRA. Vale lembrar que raras oportunidades a IC citou em seus trabalhos os abusos cometidos pelo governo do Uganda ou do Sudão contra a população.
O vídeo com requintes de Hollywood foi visualizado mais de 26 milhões de vezes só na primeira semana. Hoje, após três anos do lançamento, a produção já conta com quase 100 milhões de acessos.
Entretanto, uma grande campanha atrai também os que estão informados pelo assunto. O resultado foram duras críticas de importantes jornalistas correspondentes de Uganda, além dos próprios intelectuais ugandeses. Isso porque o que estava sendo vendido não correspondia à realidade que o país estava vivendo no momento e sim de fatos que haviam acontecido seis anos antes. O próprio Kony não estava mais no país, afirmaram os críticos.
De acordo com Teddy Ruge da Diáspora de Uganda, um grupo composto por intelectuais do país afirmou que campanhas como esta atrapalham as relações internacionais entre os países. Para ele, intervenções como esta só fazem com que a África continue sendo tratada como “cesto de lixo”. Os ugandeses, segundo Ruge, têm voz e capacidade de lutar contra seus próprios problemas.
Outros fatores, no entanto, surgem para compor o cenário desta intervenção em Uganda. A China é o segundo maior investidor estrangeiro no país, ficando atrás apenas da Inglaterra – e também é a maior investidora nas reservas de gás do Sudão do Sul. E não para por aí, os chineses têm investido pesado na extração de riquezas do Great Rift Belt, o maior cinturão geológico de reservas minerais do mundo. Região também onde teoricamente o grupo de Kony estaria agindo.
Recentemente, geologistas descobriram petróleo em Lake Albert, na fronteira de Uganda com o Congo. Outra razão para uma cooperação e estabilização da área com forças especiais. A região da África central e oriental é considerada uma das mais inexploradas no mundo em relação a petróleo e gás.
O envio de tropas em missões de paz e intervenções de qualquer tipo é como os Estados Unidos tem garantido sua influência justamente nesta região onde a China vem se fortalecendo.
Voltando a Kony, pode-se perceber que a soberania de Uganda é completamente desrespeitada e a habilidade de solucionar crises domésticas pelos próprios governantes é de descrédito.
E os Estados Unidos se considerando a “polícia do mundo”, o exemplo de democracia a ser seguida não consideram que esta soberania valha algo em âmbito internacional, embora Barack Obama afirme que a intervenção é uma ajuda às nações amigas e que é uma questão de segurança nacional. Mas, a dita polícia também não deveria respeitar os direitos internacionais e a soberania nas questões domésticas já que Kony não é o governante daquele país e sim um cidadão criminoso?
Keohane reconhece que é preciso defender os direitos humanos mesmo que seja com a intervenção humanitária, seja ela autorizada ou não. Para ele, a a soberania é um valor instrumental, útil em algumas condições, mas não uma condição inabalável, principalmente, quando há riscos à vida.
Portanto, a omissão de socorro é pior do que a atuação, como o caso do genocídio em Ruanda, em 1994, onde não foi feita intervenção.
Todavia, a defesa de populações em risco só acontecem em países onde há riquezas naturais ou valor estratégico geopolítico. O custo de ser a polícia do mundo e financiar exércitos alheios é alto e com a crise financeira, a tendência é que o governo norte-americano se torne cada mais seletivo na hora de escolher quem deverá “salvar”.
Os direitos humanos não deveriam ser defendidos pelos policiais do mundo em todas as regiões nas quais precisam deles? O Conselho de Segurança da ONU estaria falido? O que dizer da Guerra do Iraque, que não foi autorizada, porém foi feita para liberar o povo da ameaça do líder iraquiano Saddam Hussein? Fato como este abrem precedentes perigosos sobre intervenções ilegítimas, nas quais os únicos não beneficiados são os cidadãos.
Dúvidas de uma ordem unipolar.
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