A perspectiva de paz em Cabul e o real fim da Guerra Fria
A Guerra Fria acabou. Vida longa à Guerra.
Quando em 1979, a União Soviética invadiu o Afeganistão, ninguém poderia imaginar as consequências duradouras – e devastadoras – que isso traria para o país. Em suma, o Exército Vermelho ocupou as terras afegãs para garantir a continuidade do governo socialista do presidente Nur Muhammad Taraki. Por causa das reformas políticas e culturais propostas por Taraki, o governo enfrentava uma onda de instabilidade fomentada pelos grupos mais conservadores do país.
Esse descontentamento da população em relação às mudanças planejadas pelo líder da nação como, por exemplo, a reforma agrária e alterações nas leis do casamento, fomentou o ambiente propício ao golpe, que vitimou Taraki e instituiu Babrak Karmal no poder da República Democrática do Afeganistão. O apoio do bloco soviético ao golpe enfureceu não só a comunidade internacional, mas principalmente, os grupos que protestavam contra as reformas socialistas. De repente, os comunistas ocupavam os vales e montanhas de Kunshka à Kunduz, e os mujahidin – grupos insurgentes – defendiam seus territórios em um conflito que durou uma década. A Guerra do Afeganistão teria então o mesmo molde da anterior no Vietnã. De um lado, a URSS de Brezhnev , do outro, os Estados Unidos de Jimmy Carter, separando o país de acordo com a bipolarização mundial.
Apesar da influência direta da URSS nas terras afegãs, e do grande contingente do Exército Vermelho no país, foram as facções insurgentes que ocuparam boa parte do território, transformando o Afeganistão em um espaço aberto para guerrilhas. A maioria desses grupos, de vertente sunita, recebia apoio militar e econômico dos Estados Unidos e Reino Unido, e também de nações vizinhas como o Paquistão, Arábia Saudita e a China. Já os grupos xiitas receberam suporte de países como a República Islâmica do Irã. Muitos desses combatentes haviam desertado do exército do Afeganistão se juntado aos rebeldes. (GOODSON, 2001).
No livro “Afghanistan: The First Five Years of Soviet Occupation”, o diplomata americano J. Bruce Amstutz escreveu sobre a falta de planejamento soviético em relação ao conflito. De acordo com o diplomata, o comando da URSS previu apenas um apoio ao exército afegão contra os grupos insurgentes durante os primeiros anos da Guerra. Porém, o bloco acabou tomando a liderança das batalhas que ocorreram por todo o território afegão. Mais uma vez, a dominação territorial devido ao conhecimento topográfico local dos mujahidin em detrimento ao poderio militar soviético foi crucial para o enfraquecimento do Exército Vermelho ao longo dos anos de 1980. Como consequência disso, em 1987, Mikhail Gorbachev anunciou a retirada dos soldados soviéticos da região, ato que foi considerado como o primeiro sinal da queda do bloco, e o indício de que a Guerra Fria chegara ao fim.
Em poucas palavras, a União Soviética sucumbiu ao alto custo da Guerra do Afeganistão e não resistiu ao crescente fortalecimento dos grupos insurgentes. No livro “Para Ganhar a Guerra”, a tática da insurgência é descrita como aquela na qual um grupo se rebela e ataca por um longo período o contingente beligerante do inimigo. Essa tática é notoriamente utilizada por grupos com menor poder bélico e com uma razoável militância perseverante.
No caso da Guerra do Afeganistão dos anos de 1980, esses grupos tinham o suporte econômico e militar dos atores ocidentais contrários à invasão soviética. Mas não lutavam contra a invasão soviética apenas, e sim, contra o invasor. É importante pontuar que para o Afeganistão – e região – a Guerra Fria transcendia a significação global do conflito, no qual o mundo bipolar assistia uma corrida armamentista entre o ocidente e o oriente no modelo mais descritível pelo Realismo de Hans Morgenthau, em seu livro “Politics Among The Nations”. Para os afegãos, apesar de o conflito também ser ideológico, e neste caso, a ideologia religiosa ameaçada pelo estrangeiro, para eles, a guerra não era fria. Isso nos permite afirmar que apesar da aclamação de que os insurgentes venceram o conflito, na verdade, não é possível considerar a vitória de nenhuma das partes envolvidas na Guerra até o momento, já que o país ainda sofre com a invasão do outro.

Herança ou Perpetuação?
O maior impacto da primeira guerra do Afeganistão foi a consolidação de grandes grupos insurgentes contra a presença da URSS na região, entre eles, a Al Qaeda. Junto com o final da guerra, o grupo fundamentalista de Osama Bin Laden passou a ser referência de terror para os governos ocidentais. A complexidade do grupo em termos de organização e táticas extrapolam o restrito significado aplicado ao termo “grupo terrorista”. No livro “Al-Qaeda – A verdadeira história do radicalismo islâmico”, o jornalista americano Jason Burke descreve o grupo da seguinte maneira: “Em vez disso [grupo terrorista], essa ameaça é nova e diferente, complexa e diversificada, dinâmica e multiforme e extremamente difícil de ser definida”. Se voltarmos a velha tática de guerra, e ao invés de procurar entendê-la em um contexto mais abrangente, teríamos um outro tipo de insurgência mais poderosa e mais articulada politicamente, que vai além da resistência e parte para uma escala mais global.
Outra presença importante na região é a do Talibã, um grupo político que atua no Afeganistão e no Paquistão desde o início dos anos de 1990, período no qual os historiadores ocidentais denominam de Perestroika. A milícia tem origem nas tribos que vivem na fronteira entre esses dois países e se formou em 1994, após a ocupação soviética do Afeganistão. Desde 1996, o Talibã invadiu a capital Cabul e tomou o poder, com o objetivo de instaurar um governo mais liberal na região. Diferente da Al Qaeda, o Talibã age com o foco mais regional e menos conservador. Outra diferença entre as facções é que a Al Qaeda é composta por árabes, enquanto o Talibã congrega indivíduos das tribos afegãs, a maioria deles da etnia pashtun.
Contudo, apesar de diferirem em sua ideologia, os dois grupos são aliados e se ajudam nas questões de logística, armas e dinheiro. Para o ocidente, principalmente para os Estados Unidos e Otan, essa aliança era vista com desconfiança, principalmente no arcabouço econômico referente aos commodities e ao controle regional. Neste caso, ao acesso do gás e do petróleo no Oriente Médio. Mais uma vez, o ocidente repete o discurso do medo como motivo para a guerra e cria um precedente para o ataque sem retaliações das nações definido como a guerra preventiva. Após os ataques terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos e as seguidas ameaças aos aliados da Otan, o Afeganistão se viu mais uma vez palco de uma guerra ideológica intitulada “Guerra ao Terror”.
É interessante perceber que a atual situação é bem parecida com a da década de 1980, quando a região sofria com a presença de um “inimigo” em comum. Do ponto de vista histórico, a percepção que fica indica que para a região a Guerra Fria e suas aplicações em termos de ocupação territorial, influência cultural e militar ainda não acabou. Apenas mudou-se o antagonista.
A resistência continua, assim como a ocupação estadunidense e de seus aliados, que clamam a vitória mais uma vez, e ao mesmo tempo digladiam-se com a opinião pública, que classifica a guerra como um gasto desnecessário. Mais uma vez, a história se repete do ponto de vista logístico, ao passo que o lado de maior poder bélico enfrenta, mais uma vez, a força que tem o “tempo” em um conflito em escalas como estas. A ordem de retirada do exército americano já foi dada. Mas a autonomia governamental da região está longe de ser considerada estável. Carlos Pereira descreveu em “Dez Anos da Guerra do Afeganistão” o momento da administração Obama e sua “cruzada contra o terror”. “A situação está a comprometer o próprio alcance dos avanços militares e a provocar o alarme e mesmo um crescente mal -estar entre as forças da Aliança e o próprio regime de Cabul. Os sinais de hostilidade face à presença militar estrangeira multiplicam-se entre a população, arriscando-se a oferecer terreno fértil à penetração da guerrilha Talibã”. Mesmo com a eleição de Ashraf Ghani em 2014, aliado dos Estados Unidos, é possível observar que a Guerra Fria se perpetuana busca da continuação da liderança ideológica que transcende as montanhas afegãs. Até o momento, a independência de seu governo é insatisfatória,devido a um conflito civil jamais presenciado, muito provavelmente por causa da força armamentista das milícias.
Perspectivas de Paz
Desde o final da década de 1970, os conflitos naquela região geraram um altíssimo número de baixas militares, mas o que chama mais atenção é o número de mostos entre a população civil. Na guerra contra o bloco soviético, estima-se que morreram mais de 1 milhão de afegãos. Já na guerra atual, a morte de civis já ultrapassou a estimativa 30 mil casualidades. As negociações de paz na região, por anos, pareciam cada vez mais improváveis de surtir algum resultado positivo. Apesar dos inúmeros momentos de armistícios, nenhuma solução duradoura e satisfatória foi deliberada.
Nos últimos dois anos, a construção de um acordo que poria fim ao estado de beligerância no Afeganistão começou a ser desenhado. O primeiro-ministro do Paquistão, Nawaz Sharif, e o Presidente afegão, Ashraf Ghani, concordaram no final de 2015 em realizar um esforço conjunto para concretizar o tratado de paz com os talibãs. Pressionados pelos Estados Unidos e China, os dois países tentam agora uma solução por via diplomática para alcançar o equilíbrio de poder.
Mas o processo de paz no Afeganistão vai além do desarmamento desses grupos. É importante lembrar que a região enfrenta altos índices de pobreza, desemprego e corrupção, além das constantes violações de direitos humanos. Para o sociólogo Johan Galtung, teórico dos Estudos de Paz, é preciso considerar ao menos três formas de violência quando se busca construir um ambiente livre de conflitos. Para Galtung, a violência e a paz podem ser classificadas da seguinte maneira: a violência cultural (produção de ideias justificativas das demais violências) com a paz cultural (cooperação e comiseração com todas as formas de vida); a violência direta (eliminação física do outro) com a paz direta (formas de controle não-violentas, com sanções positivas); e a violência estrutural (mecanismos sistêmicos de injustiça e morte) com a paz estrutural (satisfação das necessidades básicas e distribuição de bens e serviços). Para que um projeto de paz alcance a sua plenitude, teoricamente as negociações deveriam abranger esse tríplice conceito, já que é possível observar na região um estado de violência generalizado.
As motivações para a busca pela paz no Afeganistão são, do ponto de vista das nações, estritamente econômicas e geopolíticas. Para a China, a fluidez nas fronteiras da região garantiriam o sucesso da nova Rota da Seda. Para os Estados Unidos, a manutenção ideológica e estratégica na região. Porém, o estado da guerra civil afegã não depende de um acordo de senhores, e sim, da dinâmica pelo controle territorial das milícias talibãs e a violência cultural, estrutural e direta no país. Para reverter a situação beligerante, seria necessário não apenas uma negociação de paz com os talibãs mas a reconstrução da economia, além do fortalecimento das estruturas de serviços básicos como saúde e educação, sem contar na relocação da população. As negociações de paz no Afeganistão até o momento são apenas simbólicas. Ao que parece, a perspectiva de uma paz positiva (aquela que não sofre ameaças e instabilidade) na região está longe de ser alcançada.
BIBLIOGRAFIA
Amstutz, J. B. (1986). Afghanistan: The First Five Years of Soviet Occupation National Defense University Press [S.l.] p. 43.
Burke, J. Al-Qaeda – A verdadeira história do radicalismo islâmico, Ed. Zahar, 2007.
Galtung, J. Três formas de violência, três formas de paz. A paz, a guerra e a formação social indo-europeia. trad. João Paulo Moreira, in: Revista Crítica, nº 71 (Junho), pp. 63-75.
Goodson, Larry P.(2001), Afghanistan’s Endless War: State Failure, Regional Politics, and the Rise of the Taliban, University of Washington Press, ISBN 978-0-295-98050-8, pp. 56–57
Johnson, R., Whitby M., France. Para ganhar a guerra: As 25 melhores táticas de todos os tempos, Ed. Zahar, 2008.
Messari, N; Nogueira. J.P. Teorias das Relações Internacionais – correntes e debates. Ed. Campus, 2005.
Pereira. C. S; Dez Anos da Guerra do Afeganistão. Nação e Defesa. 2011.
Yousaf, Mohammad & Adkin, Mark (1992). Afghanistan, the bear trap: the defeat of a superpower Casemate [S.l.] p. 159.
Afghans Want Peace, And Hope Their Next President Is Listening. The Huffington Post. 06/14/2014 <http://www.huffingtonpost.com/2014/06/14/afghanistan-peace-road-map_n_5494947.html>
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