Desde 2018, após Pedro Pablo Kuczynski renunciar o cargo de presidente do Peru para não sofrer um iminente impeachment, o país vive uma instabilidade na política institucional sem precedentes, nenhum nome que sucedeu PPK (como é conhecido Kuczynski) completou o mandato, tendo inclusive um eleito que governou por apenas 5 dias, Manuel Arturo Merino. Logo, imaginar que Pedro Castillo teria vida fácil à frente do país, ainda mais depois de um segundo turno onde venceu por menos de 0,5 pontos percentuais (Castillo teve 50,2% dos votos contra 49,8%), era impossível. Se já não fosse suficiente esse pano de fundo, a sua adversária é a líder da oposição e presidente do congresso (no Peru somente existe uma câmara, unicameral) e filha do ex-ditador Fujimori, Keiko Fujimori.
Castillo assumiu em 2021 com a esperança de uma virada gradual a uma esquerda mais conciliadora e popular, mesmo depois de seu antecessor não ter completado, também o mandato (Fernando Sagasti ficou no poder de novembro de 2020 até julho de 2021). Ainda que com uma alta polarização no país dividindo um segundo turno com o passado sombrio do país, sob a batuta dos Fujimori na extrema direita ditatorial, Castillo chegou ao poder prometendo uma renovação de gabinete, conciliação e políticas voltadas para o combate à corrupção e as camadas mais pobres.
Em menos de 1 ano no governo Castillo cumpriu o que vários analistas políticos já esperavam, inclusive esse que vos escreve, mostrou sua fraqueza em escolher e liderar seus ministros, apelou para uma popularidade não tão reconhecida assim e decidiu enfrentar o congresso com todas as forças. Através da figura do primeiro ministro indicado pelo presidente (no Peru o presidente nomeia um primeiro ministro, como função de estabelecer os laços políticos de forma governável entre o poder executivo e o legislativo e judiciário), Castillo enfrentou derrotas tão marcantes que chegou a ter 5 primeiros ministros nesses curto período. Seu último subiu ainda mais o tom e aumentou as apostas em todas as brigas com o congresso, ao invés de criar governabilidade gerou mais instabilidade para Castillo, na tentativa de “obrigar” o legislativo a seguir o rito do executivo em aprovar leis. Porém lembremos que a líder do legislativo foi adversária de outra hora do então presidente e representa um dos conservadorismos mais vivos na América Latina, a era ditatorial de Fujimori.
Na constituição peruana, uma das necessidades e tentativas de Castillo é a de modifica-lá, existe um mecanismo chamado voto de confiança, que permite uma espécie de apelação do executivo ao congresso quando esse não concorda e não acata pedidos do presidente (dentro de algumas situações específicas). Porém, caso o legislativo rejeite esse voto de confiança do presidente duas vezes, é aceito a cláusula de ingovernabilidade, que permite que o presidente feche o congresso e convoque novas eleições, como ocorrido no governo de Martin Vizcarra em 2019.
Dessa forma, utilizar o voto de confiança é visto como algo não tão popular politicamente, uma vez que se rejeitado a primeira vez, enfraquece o executivo, pois o obriga a dissolver todo o seu gabinete ministerial e fazer novas indicações, e na segunda vez cria a situação citada. No entanto, Aníbal Torres, o 5º primeiro ministro de Castillo, apesar de ter solicitado o voto de confiança ao congresso, esse por sua vez não o rejeitou, pontuando que a situação que Torres e o governo pediam não estava prevista na constituição para ser utilizado tal instrumento. Ao fim de novembro, com mais uma derrota vista pelo governo, Torres entregou o cargo, e Castillo em pronunciamento nacional, pediu ao congresso: “Peço ao Congresso que respeite o Estado de Direito, os direitos do povo, a democracia e o equilíbrio dos poderes do Estado”.
É bem verdade que o legislativo peruano já tentou por duas vezes um processo de impeachment contra Castillo, sem sucesso, e tem conseguido atacar e até censurar ministros indicados, obrigando-os a se demitirem. Fatos esses que estão no centro do problema do país, um congresso controlado majoritariamente pela oposição e com fortes influências da extrema direita pelas mãos da presidente Keiko Fujimori, que parecem aceitar ou tolerar nomes mais próximos de sua ideologia política, ainda mais sob esta presidência do congresso. Em resumo, existe uma dura batalha pelo poder no país, onde perdura a total instabilidade e governabilidade de praticamente qualquer um que não siga as cartilhas do congresso.
Castillo e alguns membros próximos entenderam essa rejeição ao pedido de Torres, como uma segunda recusa ao voto de confiança, e como o gabinete e o próprio presidente já estavam acusando o congresso e até o judiciário de uso político da justiça, essa foi a nota que faltava para a melodía golpista se estabelecer. Ameaças ao congresso por conta dessa rejeição, que por sua vez abre um terceiro pedido de impeachment contra o presidente. Como não havia mais condições de governabilidade ou de conversas entre os poderes, Castillo promove uma espécie de “autogolpe”, alegando ter tido o voto de confiança rejeitado duas vezes, decreta estado de sítio no país, fecha o congresso, dissolve os membros, e vai além, fecha o judiciário (poder que julgaria quem tinha razão nessa interpretação), e tenta perseguir seus membros. Porém sem maioria, fraco e com uma aspiração extremista sem popularidade, o presidente é deposto e preso em fuga, após não ter tido o apoio das forças armadas, e da população.
Em seu lugar assume Dina Boluarte, sua vice-presidente, que em falas anteriores já havia se mostrado cética as ações de Castillo, para um mandato até 2026 como diz a constituição. No entanto a instabilidade chegou às ruas, como se espera em uma democracia não estável, e a parcela social que votou e apoiou Castillo iniciam uma série de protestos pelo país pedindo novas eleições e não reconhecendo Dina Boluarte como presidente legitimamente eleita.
Respondendo a pergunta do título e retornando ao início do texto, o que ocorre no Peru é sim um sinal de alerta para essa nova onda rosa na América Latina, principalmente em países onde a maioria estabelecida nos congressos são da oposição extrema, caso do Brasil por exemplo. Será preciso resiliência e muita habilidade política para realizar um equilíbrio entre os poderes ao passo que se articule bases sólidas para a manutenção dessa nova esquerda no poder. No entanto é preciso lembrar que existem inúmeras diferenças estruturais no dia a dia político de cada país e portanto apesar de ser um sinal de alerta sim, devemos entender caso a caso e analisar como cada governo se comportará.
Referências Bibliográficas:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/pedro-castillo-dissolve-congresso-e-convoca-eleicoes-no-peru/
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo. UNIVESP TV. 2014
GALEANO, Eduardo. Veias abertas da América Latina. São Paulo. Paz e Terra. 1979
HOBSBAWN, Eric. Viva la revolución - A era das utopias na América Latina. Companhia das Letras. 2017
Podcast “Ao Ponto, Ep. Os desafios dos governos de esquerda eleitos na América Latina”
Podcast “Ao Ponto, Ep. A Fraqueza das Democracias na América Latina”
Bernardo Monteiro é graduado em Relações Internacionais pela UNESA e também pós graduado (MBA) em Relações Internacionais pela FGV-RJ; autor de Para uma Estabilidade Democrática, possui formação como analista político internacional; atua como escritor, analista político, pesquisador e divulgador científico sobre: política brasileira, história da democracia, democracias ocidentais e sociopolítica;
foi pesquisador associado do Laboratório de Simulações e Cenários da Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil (LSC-EGN/MB); foi professor convidado para a disciplina Análise de Política Internacional para a graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ; foi professor de Análise de Política Externa para o I Congresso de Relações Internacionais (I CONRI); foi palestrante e professor sobre política brasileira, análise política, geopolítica, democracias e cenários prospectivos.
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