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Aspectos jurídicos e políticos da decisão sobre a competência do Tribunal Penal Internacional para i

No dia 05 de fevereiro de 2021, o Tribunal Penal Internacional (TPI) proferiu decisão histórica e reconheceu a sua competência para julgar fatos acontecidos no território da Palestina. Como resultado dessa decisão, a promotoria do tribunal comunicou, no dia 03 de março de 2021, que estava abrindo procedimentos de investigação para apurar possíveis crimes cometidos ali por membros das forças armadas de Israel e por militantes vinculados ao Hamas a partir de 2014.

O caso é permeado por polêmicas jurídicas e políticas que, mesmo depois do proferimento da decisão, ainda perduram. Juridicamente, a polêmica assenta-se na dúvida acerca da condição de Estado da Palestina, havendo argumentos favoráveis à impossibilidade de considera-la membro do Estatuto de Roma (o tratado que instituiu o TPI) devido ao fato de alegadamente não reunir as características necessárias para ser um ente estatal. Se não for considerada Estado, a Palestina não poderia ter assinado e ratificado o documento, e o tribunal não poderia exercer jurisdição em seu território. Já em termos políticos, a contenda gira em torno de eventuais condenações de ocupantes de altos cargos das instituições de poder israelenses, possibilitadas pela recente decisão; o que poderia ter um peso resolutivo para a intricada e longeva negociação da questão palestina. Vale lembrar que a decisão de fevereiro e a abertura de procedimentos investigatórios de março não significam o reconhecimento da configuração de quaisquer crimes, mas apenas que o TPI pode julgar episódios havidos em território palestino e que a promotoria do tribunal enxerga indícios suficientes para se dar início a investigações preliminares ao julgamento.

Embora a humanidade já tenha tido a experiência de tribunais internacionais com a função de investigar, julgar e condenar indivíduos por crimes cujo interesse foi considerado transfronteiriço, o Tribunal Penal Internacional é a primeira corte permanente com essa atribuição (Portela, 2017). Ele foi instituído pelo Estatuto de Roma de 1998 para analisar crimes graves e de alcance internacional cometidos por indivíduos. Hoje se reconhecem como tais os crimes de guerra, contra a humanidade, de genocídio e de agressão, por serem entendidos como nocivos à paz e à estabilidade mundiais e, consequentemente, como pertinentes à toda a sociedade de Estados.

A existência de uma corte permanente com capacidade de reprimir ilícitos penais de maior gravidade é, sem dúvida, um avanço para o Direito Internacional, uma vez que as experiências anteriores à atual foram acusadas de formar tribunais de exceção, criados exclusivamente e com parcialidade para condenar determinados atos. Apesar do avanço, a atividade do TPI ainda depende muito da vontade dos Estados, pois ele apenas pode desempenhar aquilo que lhe foi atribuído pelo Estatuto de Roma, caso os Estados ratifiquem esse tratado e reconheçam a sua competência para tanto. Isso, porque, de acordo com o Princípio da Soberania, cada Estado é a maior autoridade a exercer poder dentro das fronteiras de seu território. Assim, o tribunal só é competente para investigar e julgar atos acontecidos nos territórios daqueles países que soberanamente decidiram fazer parte do Estatuto de Roma ou cometidos pelos nacionais dos mesmos países.

Ainda que não se possa deixar de reconhecer a importância do Princípio da Soberania para a manutenção de relações internacionais minimamente equânimes, ele é um limitador para as atividades do TPI. Ora, Estados frequentemente envolvidos em polêmicas quanto à (in)observância dos Direitos Humanos e com algum excedente de poder não se submetem à jurisdição do tribunal. O fato impede que violações graves cometidas em território de Estados tais e pelos seus nacionais sejam julgadas no âmbito da corte. Dentre aqueles Estados que se recusam a ratificar o Estatuto de Roma, estão três dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, China e Rússia) e Israel, tradicional aliado dos Estado Unidos; o que denota como o espaço de manobra do tribunal ainda é muito vinculado à balança mundial de poder.

É justamente a condição de Israel de não membro do Tribunal Penal Internacional a causa do caráter emblemático da decisão de fevereiro de 2021, pois, por não ter ratificado o Estatuto de Roma, a corte não poderia investigar e julgar aquilo acontecido em seu território e cometido pelos seus nacionais. Ocorre que a Palestina ratificou o respectivo tratado, que passou a operar-lhe efeitos em abril de 2015. Esse processo aconteceu depois da aprovação da resolução 67/19 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que afirmou o status de Estado observador da Palestina perante si e, segundo a decisão do TPI, criou condições para que o Secretariado da ONU aceitasse o depósito de ratificações palestinas a tratados abertos à adesão de todos os Estados.

Como a Palestina passou por todo o procedimento necessário para se tornar membro do tribunal, desde a ratificação do Estatuto de Roma até o depósito dessa ratificação junto ao Secretariado da ONU, a corte entendeu ser competente para exercer a sua jurisdição sobre atos cometidos no território palestino ou por nacionais palestinos. Nesse sentido e de acordo com a decisão de 05 de fevereiro de 2021; a promotoria do tribunal poderá investigar, e a corte poderá julgar atos cometidos por indivíduos israelenses dentro da Palestina, mesmo que Israel não seja membro Estatuto de Roma.

Vencida a questão acerca da possibilidade de adesão palestina ao tratado instituidor do Tribunal Penal Internacional, a corte preocupou-se, ainda, em definir, especificamente para fins de sua atuação, qual seria o território da Palestina. Para tanto, ela afirmou que a existência de dúvidas acerca da real extensão do território de um Estado não é impeditiva para que o TPI exerça a sua jurisdição. Ademais, recorreu a diversas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas que já reconheceram o direito à autodeterminação e à soberania do povo palestino sobre os territórios ocupados militarmente por Israel desde 1967, incluindo-se a Faixa de Gaza, a Cisjordânia e Jerusalém Oriental.

Seguindo tal raciocínio, a Palestina estaria apta a compartilhar a sua soberania com o tribunal sobre as áreas citadas (Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental), como o fez ao aderir ao Estatuto de Roma. O argumento ora descrito foi baseado na necessidade de se interpretar o mesmo estatuto de acordo com os parâmetros dos Diretos Humanos; de modo que a corte não poderia relativizar a prerrogativa fundamental do povo palestino à autodeterminação, a qual, no seu entendimento, tem eficácia para alguns povos e não tem para outros. A corte também afirmou que interpretar os termos do Estatuto de Roma de modo a não reconhecer a possibilidade de adesão palestina significaria reduzir a margem de atuação do tribunal, o que seria contrário aos seus objetivos de punir e prevenir a ocorrência de crimes graves de pertinência internacional.

Apesar de acenar a todo tempo à defesa dos Direitos Humanos, a decisão do Tribunal Penal Internacional foi politicamente muito cautelosa. Isso, porque a corte se preocupou em deixar claro que o reconhecimento da validade da adesão palestina ao Estatuto de Roma e do seu território conforme as fronteiras anteriores a 1967 estava sendo feito exclusivamente para o exercício da jurisdição do TPI. Assim, o tribunal, segundo a decisão, não estaria adjudicando acerca do status palestino enquanto ente estatal, tampouco acerca de suas fronteiras para fins de Direito Internacional, por não ter competência para tanto.

A decisão proferida pelo Tribunal Penal Internacional de 05 de fevereiro de 2021 é um bom exemplo de como os limites entre o jurídico e o político são, muitas vezes, confusos em Direito Internacional. Uma das razões para tanto está no fato de a sociedade de Estados não contar com um ente hierarquicamente superior com poderes para implementar decisões obrigatórias. Assim, em geral, o cumprimento daquilo que é prescrito pelas organizações internacionais dependem dos próprios Estados, que o fazem ou deixam de fazer por razões políticas. Ao decidir sobre a sua competência para investigar e julgar fatos cometidos em território palestino, o TPI fez uma construção argumentativa de contornos jurídicos bem definidos, baseando-se em documentos internacionais anteriores que reconhecem a autodeterminação e a soberania do povo palestino e na necessidade de prestar máxima eficácia aos Direitos Humanos. Ainda assim, esquivou-se politicamente de afirmar que a Palestina é um Estado e que o seu território inclui áreas ocupadas por Israel desde 1967 para todo e qualquer fim, mesmo havendo argumentos fortes de Direito Internacional nesse sentido.

A mesma cautela política foi adotada pela promotoria do tribunal, na figura de sua chefe, a gambiana Fatou Bensouda, que, ao comunicar a abertura de procedimentos investigativos em consequência da decisão ora analisada, fez questão de afirmar a imparcialidade de seu trabalho e da atuação do Tribunal Penal Internacional. Vale lembrar que o mandato de Bensouda está a poucos meses do fim, logo a decisão de abrir a investigação para apurar possíveis crimes acontecidos em território palestino denota coragem e ânima em cumprir com os termos do Estatuto de Roma. A mesma postura corajosa foi vista, em 2020, quando a promotora solicitou a abertura de investigações de eventuais ilícitos penais acontecidos no Afeganistão cometidos por membros do exército estadunidense. À época, o movimento custou-lhe a imposição de sanções pelo governo Donald Trump, as quais ainda não foram suspensas, mesmo com a troca de comando na Casa Branca.

É curioso que demandas tão antigas do Direito Internacional Humanitário tenham demorado tanto tempo para ser endereçadas; e, ao mesmo tempo, é sintomático dos problemas do sistema mundo que esse endereçamento tenha sido iniciado sob o comando de uma mulher africana. Oxalá que elas ocupem mais espaços dentro das instituições de poder da sociedade internacional.

Vitor Furtado de Melo, natural de Cascavel, porém criado em Varginha (MG), é bacharel em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro com pós-graduação em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional.  Entusiasta do estudo da área das Relações Internacionais e da Análise de Política Externa. Direito Internacional Público, Direitos Humanos e atuação das cortes regionais de Direitos Humanos são suas áreas de maior interesse; especialmente sob uma abordagem crítica e pós-colonial. Possuí grande interesse em estudar o reconhecimento de novas dimensões dos Direitos Humanos e novas expressões dos Direitos Difusos e Coletivos. Em suas horas livres, tenta consumir produções artísticas de diversas culturas, em forma de livros, filmes e séries e tentando dar certa preferência a conteúdos latino-americanos. Gosta também de cozinhar e cuidar das suas plantas; sempre escutando samba e MPB.

FONTE:

ICC – INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Decision on the Prosecution request pursuant to article 19(3) for a ruling on the Court’s territorial jurisdiction in Palestine. Decisão de 05 de fev. de 2021. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/Pages/record.aspx?docNo=ICC-01/18-143. Acesso em: 19 de mar. de 2021.

ICC – INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Statement of ICC Prosecutor, Fatou Bensouda, respecting an investigation of the Situation in Palestine. Disponível em: https://www.icc-cpi.int/Pages/item.aspx?name=210303-prosecutor-statement-investigation-palestine. Acesso em 19 de mar. de 2021.

PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado: incluindo noções de Direitos Humanos e de Direito Comunitário. 9ª edição, Salvador: Jus Podivm, 2017.

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