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Até as quinhentas

Até às quinhentas é uma expressão em crioulo da Guiné-Bissau, que resume de uma forma pertinente e profunda o que foi a experiência de gestão em cooperação internacional que tenho o prazer de compartilhar aqui. Até às quinhentas, ou como chegar ao seu objetivo com persistência, obstinação e, acima de tudo, quando tudo parece em vão. Até às quinhentas, ou como jovens vivendo num grau de vulnerabilidade extrema conseguem realizar proezas (o que chamaríamos ingenuamente de milagres), sem nunca desistir. É mais ou menos essa a carga semântica que a expressão resume e que também simboliza a experiência que tive ao gerenciar o Projeto “Jovens Lideranças”, em Bissau, capital da Guiné-Bissau, na África, em 2012: fui para ser o gestor e voltei com aprendizagens profissionais e pessoais indeléveis.

Purgatório

Inúmeras vezes embarquei no aeroporto de Guarulhos em São Paulo, mas, nesta, senti um grau de insegurança que, se conseguiu abalar um pouco minhas pernas, não deixou de me atrair inexoravelmente. Muitas lembranças atravessaram minha mente enquanto a distância que me separava do meu destino final se encurtava.

Uma escala de um dia em Lisboa, como para me recordar de meu elo europeu, pois sou nascido e criado na França –  filho de mãe brasileira e pai romeno. Pensamentos se misturavam. Me recordei dos valores que meus pais me ensinaram e que me levaram até aquele banco da praça da Glória, na capital portuguesa. No caderno aberto, iniciei a escrita do que seria a experiência mais inspiradora da minha vida. Distraído pela singular beleza da cidade, lembrei-me da agente da Polícia Federal portuguesa, que ao ver que meu destino era Bissau, mudou radicalmente de expressão e me olhou como se eu fosse passar pelo purgatório.

Adaptação

Desembarquei na capital guineense no dia 27 de fevereiro de 2012. Tinha lido e estudado tudo sobre o projeto para o qual eu tinha sido selecionado como gerente executivo. Resumidamente, produto de uma cooperação internacional entre os Governos Brasileiro e Guineense, por meio da Agência Brasileira de Cooperação, o projeto envolvia atores diversos nos dois países, como seus respectivos Ministérios da Educação; a Unesco; duas organizações brasileiras do terceiro setor, Fundação Gol de Letra e Instituto Elos; e uma associação juvenil do v, por intermédio da qual tudo tinha começado.

O desenvolvimento das ações estava previsto em duas linhas: construção de uma escola de ensinos formal e extracurricular, e capacitação de professores locais e de jovens para a coordenação e execução de atividades educacionais, esportivas e culturais. O papel de gerente executivo era fundamental para a continuidade dos processos. Teria que lidar com interlocutores estratégicos, como o Embaixador do Brasil em Bissau, o Ministro da Educação Guineense e o Presidente da Câmara de Bissau. Também atuaria em conjunto com comunidades locais e engenheiros responsáveis pela obra.

Ao chegar ao hotel, após uma longa e esgotante viagem, fiquei surpreendido por identificar uma influência importante da cultura francesa, o que iria ajudar a me aclimatar àquele novo cenário de uma maneira mais amena. Músicas francesas, canal francês na televisão e até comidas e bebidas das quais eu gostava, ou não, quando criança. Isso se explica porque a Guiné Bissau, ex-colônia portuguesa, é cercada pelo Senegal e pela Guiné-Conakry, duas ex-colônias francesas. Se um dos passos mais importantes ao chegar num lugar desconhecido é o de se adaptar, esse contexto histórico e geográfico me foi muito favorável.

Primeiro contato

Após uma noite de descanso, pela manhã, fui conhecer a Embaixada do Brasil, onde eu dividiria uma das salas para desenvolver as atividades ligadas ao projeto. Ali tive meu primeiro encontro com o Embaixador e sua equipe. Tomei rapidamente minhas marcas nesse novo lugar de trabalho e planejamos as próximas ações a serem realizadas. A primeira delas seria a visita à comunidade e à obra que já tinha se iniciado havia algum tempo.

Saímos em direção à comunidade São Paulo, onde iríamos encontrar os jovens da Associação Amizade. Estávamos visitando a obra quando tive meu primeiro contato direto com a complexidade histórica e étnica da cultura guineense. Enquanto estávamos levantando informações, começamos a sentir uma curiosidade mais intensa em relação à nossa presença. Ao nos afastar do terreno, fomos abordados por pessoas da comunidade, que iniciaram uma disputa na língua local, o crioulo, com o líder do grupo de jovens que estava conosco.

Logo a discussão se tornou agressão física e me encontrei no meio de uma briga, tentando separar os protagonistas. Diante daquela situação, preferimos nos afastar do local. No caminho de volta, ouviam-se gritos em crioulo, alguns compreensíveis, que ecoaram na minha mente durante algum tempo: “branco”, “colonizador”.

Para entender o que aconteceu, é preciso imaginar como funciona uma nação onde justiça comunitária e do Estado tentam coabitar da maneira mais eficiente e pacífica possível. O país é composto por inúmeras etnias e as terras constituem uma das únicas fontes de riquezas. Por isso, antes de se utilizar um terreno, é obrigatório conversar e negociar com o dono tradicional da terra, o “régulo”, uma espécie de autoridade tribal. Uma grande parte de meu trabalho nas instâncias públicas de Bissau seria, de fato, para legalização do terreno da escola.

Aos poucos, dei início às tarefas emergenciais. O processo de legalização iria me pedir muita paciência e obstinação, até ficar quase três dias inteiros na Câmara Municipal para publicação de um documento fundamental. Preocupado com a autonomia dos jovens e convencido de suas capacidades, fazia questão de que estivessem comigo em todas as etapas. Mas, enquanto tudo estava caminhando bem, o peso histórico e político da Guiné-Bissau iria voltar estrondosamente.

O golpe

Quando minha companheira chegou, estávamos no final de março. Eu tinha trocado o hotel por um apartamento, já prevendo a vinda dela. O país se encontrava no meio de dois turnos de eleições presidenciais, antecipadas por causa da morte do então Chefe de Estado, Malam Bacai Sanhá. O primeiro turno havia sido realizado numa aparente tranquilidade e idoneidade, com a presença de observadores internacionais.

Os desacordos, porém, começavam a surgir. Dois candidatos iriam disputar a presidência: o então primeiro-ministro, Carlos Gomes Junior, o Cadogo, do Partido Africano para a Independência da Guiné e do Cabo Verde (PAIGC), e um dos líderes tradicionais da oposição e ex-presidente de 2000 a 2003, Kumba Yalá, do Partido para a Renovação Social (PRS). Mas cinco candidatos derrotados já começavam a reclamar de falhas e fraudes no processo eleitoral. O próprio Kumba Yalá clamava que não iria disputar o segundo turno, previsto para 29 de abril, nessas condições.

A máquina diplomática chegava aos seus limites. Uma missão angolana, posta em Bissau para garantir a segurança no período eleitoral, se retirou. Já se sentia uma movimentação diferente nas ruas da cidade. No dia 12 de abril, num cenário surreal, uma frente do exército fez de reféns o Cadogo e o então Presidente interino Raimundo Pereira, e tomou posse dos meios de comunicação nacionais, que cessaram de emitir sinais. Um golpe tinha acabado de acontecer e logo um novo regime iria ser posto.

Após dois dias com toque de recolher, fomos autorizados a sair de casa. Voltei, então, à Embaixada para saber dos próximos passos do projeto. Devido à situação, o Brasil tinha rompido relação diplomática com o novo governo de Guiné-Bissau e, por isso, as atividades do projeto encontravam-se suspensas.

Sem diálogo

Com a decadência das condições de moradia (falta de água e luz em particular), fomos obrigados a voltar para o Brasil. A partir de então, passei a exercer minhas funções como gerente, até agosto, desde o Brasil, com dificuldades significativas de comunicação com Bissau. Nesse período, minhas tarefas foram mais estratégicas em termos de planejamento e administração.

Entre junho e julho foi possível realizar uma missão para liberação e acompanhamento da colocação da cobertura do prédio da escola. Mas isso teve que ser feito sem nenhum contato com instâncias oficiais guineenses, já que o diálogo se mantinha rompido.

Sem previsão quanto a uma possível retomada das relações entre os dois países e, consequentemente, das atividades do projeto, tive que tomar uma decisão difícil: não renovei o meu contrato, para poder abraçar novos desafios profissionais.

Cerca de um ano se passou desde o golpe, tempo em que pude mensurar a complexidade de um projeto de cooperação internacional. Essa experiência representou para mim um amadurecimento profissional fundamental, pois tive que lidar com gestão num cenário muito desafiante, com vários interesses e forças em jogo.

As atividades do projeto já retomaram com novo gerente. Continuo, na medida do possível, em contato com os jovens da Associação Amizade. Espero que o país do grande Amilcar Cabral possa se levantar e caminhar rumo à paz e pleno desenvolvimento.

Artigo publicado na Revista Ideias em Gestão da Faculdade AIEC.

Jérémie Nicoläe Dron

Formado em Física e História das Ciências. Especializado em Elaboração e Gestão de Projetos Sociais e em Gestão de Organizações do Terceiro Setor. Pós-graduando em Política e Relações Internacionais.

jeremie.dron@gmail.com

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