Brasil 2023 ou Brasil 1961
por Bernardo Monteiro
Se perguntássemos a qualquer analista político do final da década de 1980, como você acredita que estará o país daqui 34 anos, certamente sua resposta não seria nada próxima a uma possibilidade real de um retrocesso democrático. É claro que a realidade mudou drasticamente e hoje é muito mais fácil (ou menos difícil) prospectarmos o Brasil daqui 34 anos do que em 1989. As ferramentas e a evolução das tecnologias, assim como as mudanças socioeconômicas e sociopolíticas são gigantescas e permitem a nós, analistas políticos prospectivos, observar com um maior grau de checagem, se nossos rumos estão em linhas razoáveis.
O que nos leva a pergunta do título, e o por que comparar ou até imaginar que o país do ano que vem, poderá vir a ser, politicamente falando, algo próximo ao mesmo Brasil de 1961. Importante relembrarmos a conjuntura à época: um governo que assume sob muitas pressões, instabilidades sociais, reivindicação de mais direitos, pautas plurais e confusas em alguns momentos, uma economia bastante endividada e um cenário de guerra fria.
É bem verdade que não temos mais a guerra fria, apesar de ainda acreditar que temos algo bem parecido mas de forma assimétrica, híbrida e velada. Independente de quem assuma a presidência em 1º de Janeiro, receberá um país em frangalhos, com talvez mais problemáticas do que em 1961. No entanto há uma semelhança crítica, uma massa grande da sociedade civil que se viu representada e exaltada pelo atual presidente, e não pretende recuar na iminente derrota.
As ruas ecoam os desejos que nem o Congresso Nacional consegue prever, a exemplo disso foi a vitória, nas eleições de 2018, de um deputado de 30 anos de carreira no baixo clero, com um lema de que era "alguém de fora da política” e que “iria acabar com a corrupção”. Ao contrário de Jânio Quadros, Bolsonaro não somente ficou os 4 anos no poder, como criou as condições fundamentais para que um grande parte da sociedade se veja, e se sinta autorizada por ele a não aceitar nada menos que a reeleição.
Em 1961 as condições estavam dadas, já existiam desde Getúlio Vargas, e eclodiram com um “grande acordo nacional” (dessa vez sem o supremo e tudo), onde a sociedade civil, mídia, empresários, industriais, militares, pressionaram e contorceram até não poder mais, o já enfraquecido governo de João Goulart. Apesar de não termos a guerra fria, me parece que o medo de 61 do comunismo, ressurgiu de algum lugar para os dias de hoje, triste.
Dito isso, atento para que o Brasil 2023 corre um risco real de ser o início de um período atribulado politicamente, talvez e assim espero que não culmine, tal qual na década de 1960, no golpe de 64 e no início do período da ditadura civil militar. Como explica o Phd Saulo Goulart, a ditadura brasileira não pode ser chamada só de militar, uma vez que faziam parte - não somente de um apoio, mas do governo - civis que conclamaram e davam sustentação a ela. Da mesma forma que é preciso lembrar que antes de qualquer golpe há uma revolução, e para que um golpe aconteça é preciso uma revolução. (GOULART, Saulo)
Explico onde desejo chegar com toda essa explanação. É racional dizer que em 4 anos Bolsonaro constitui um pano de fundo, explícito em muitas vezes, que promove e deverá promover alguma revolução (se maior ou menor, mais profunda ou rasa, devemos esperar). Isso é uma garantia de que teremos um golpe? Definitivamente não. Porém toda revolução gera ruídos na democracia, a saber: as manifestações de 2013, que foram encampadas por inúmeros interesses, levaram a uma “revolução”, um processo de impeachment, sem provas, respeitando do rito jurídico porém fragmentando a solidez da política democrática, onde a absolvição veio menos de 10 anos depois.
Seria natural esperar que com a iminente derrota de Bolsonaro para Lula em alguns dias, haja um movimento contrário ao processo eleitoral, democrático, legal e seguro, tanto por parte do perdedor quanto das condições que ele criou para tal. Da mesma forma, é racional entender que os próximos 4 anos serão extremamente difíceis para Lula. A efeito de comparação, a derrota de Aécio Neves em 2014 o levou a judicializar e questionar os processos eleitorais, atuar em conjunto com a oposição para dificultar a governabilidade de Dilma e ao fim, a história se encarrega do resto, Aécio acaba desprestigiado pelo seu próprio partido, o PSDB.
A diferença é que Aécio não estava no poder, as condições para revolucionar junto com ele não existiam, algo bem diferente hoje. Em seu livro “República Brasileira. De Deodoro a Bolsonaro", Paulo Ghiraldelli Jr. ressalta essa importante comparação histórica. As condições pré criadas podem levar o Brasil a um período de instabilidade social, política e democrática, algo comparado ao Brasil de 1961. Não seria surpresa se essas instabilidades ganhassem escalas para algo maior, transformando-se em revoluções, ainda que localizadas, mas que podem, a depender da governabilidade de quem assumir, ganhar corpo e apoio da mídia e de grupos da sociedade civil.
Sempre é bom lembrar que as consequências de uma revolução, nem sempre são um golpe, mas necessariamente são abalos na estrutura democrática. Como o Phd Saulo Goulart complementa que esses abalos podem gerar o nascimento de um novo regime, que pode simplesmente ser um novo modo de democracia, ou uma nova forma de correlação entre os três poderes de uma república. No entanto, é sempre bom lembrar que uma democracia não sustenta tantos ataques como a brasileira vem sofrendo.
É fundamental entendermos o cenário que podemos estar prestes a enfrentar, teremos as ruas politicamente violentas, enquanto a política, ou melhor alguns políticos, tentarão a todo momento reconstruir o tecido social e desatar cada nó das condições pré estabelecidas. Tudo isso em uma conjuntura nada favorável, ao próximo presidente e aos membros do Congresso.
Nós precisamos estar atentos e decidirmos se o retrocesso político, democrático, fará bem à nossa república. Saber quais pautas e bandeiras devem estar em prioridade e sempre prontas para serem reivindicadas. O mundo está à beira de um novo momento histórico, talvez um redimensionamento das forças e importâncias, de potências emergentes, blocos e organizações internacionais. A ordem global pós guerra fria parece ter alcançado o seu limite e algo novo parece surgir. O Brasil nunca ficou tão isolado e desprestigiado nas relações internacionais, como nos últimos 4 ou 5 anos. Somos força motriz de um mundo cada vez mais globalizado e devemos resguardar e restabelecer nossa antiga tradição de San Tiago Dantas e Araújo Castro, de Oswaldo Aranha, de Celso Amorim.
Devemos procurar onde foi que o trilho do protagonismo global brasileiro foi abandonado e tentar retomar nossa grandeza.
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Referências:
GHIRALDELLI JR, Paulo. “República Brasileira. De Deodoro a Bolsonaro". CEFA Editorial; 2ª edição (21 outubro 2021)
GOULART, Saulo. “Uma História do Brasil desde a República”. Casa do Saber.Setembro, 2022.

Bernardo Monteiro é graduado em Relações Internacionais pela UNESA e também pós graduado (MBA) em Relações Internacionais pela FGV-RJ; possui formação como analista político internacional; atua como escritor, analista político, pesquisador e divulgador científico sobre: política brasileira, história da democracia, democracias ocidentais e sociopolítica;
foi pesquisador associado do Laboratório de Simulações e Cenários da Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil (LSC-EGN/MB); foi professor convidado para a disciplina Análise de Política Internacional para a graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ; foi professor de Análise de Política Externa para o I Congresso de Relações Internacionais (I CONRI); foi palestrante e professor sobre política brasileira, análise política, geopolítica, democracias e cenários prospectivos. Membro do CERES - Centro de Estudos da Relações Internacionais.