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BRASIL, TERRA INDÍGENA: a tese do marco temporal e o risco de perpetuação do esquecimento da memória

O plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou, em agosto de 2021, o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365, que trata sobre a demarcação da terra indígena Ibirama-Laklanõ, no estado de Santa Catarina. O território em questão foi objeto de um pedido de reintegração de posse pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Cataria, após ter sido demarcado em favor do povo Xokleng. Além da importância da lide em questão para a sobrevivência dos Xokleng, o caso é considerado por muitos como o julgamento do século, já que a sua decisão terá repercussão geral, isto é, será aplicada na definição da demarcação de novas terras indígenas e poderá basear a decisão de outros processos semelhantes.


Na prática, o que se discute é a chamada tese do marco temporal, aplicada pelo próprio STF em 2009, no caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, e em 2014, no julgamento da terra indígena Guyraroká, bem como pelo Poder Executivo, a partir da edição de parecer da Advocacia-Geral da União no ano de 2017 (Osowski, 2017; e Fontes e Marques, 2021). Segundo a tese do marco temporal, os povos indígenas só teriam direito a ver demarcado aquele território ocupado por si no momento da promulgação da Constituição da República de 1988, em entendimento baseado na vedação à “posse imemorial”. Para os ministros da suprema corte que votaram favoravelmente ao marco temporal em 2009 e em 2014, a Constituição de 1988, ao prever, em seu artigo 231, o direito originário dos povos indígenas “sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, não lhes teria concedido o direito à posse imemorial, ou seja, não contemporânea, de modo que a demarcação pela União de territórios indígenas só deveria acontecer, caso comprovada a presença de povos originários nas terras pretendidas ou a disputa por elas no momento da promulgação do atual texto constitucional.


Os julgamentos dos casos das terras indígenas Raposa Serra do Sol e Guyraroká não tiveram repercussão geral, porém foram usados para basear o parecer de 2017 da Advocacia-Geral da União, fazendo com que a demarcação de novas terras pelo Poder Executivo obedecesse ao critério do marco temporal. Esse entendimento, em verdade, vai contra à lógica inaugurada pela Constituição da República de 1988 de rompimento com o assimilacionismo. Ora, as constituições brasileiras de 1934, 1937 e 1946 já garantiam aos indígenas a ocupação e a posse das terras em que eles viviam; porém a prática de previsões legais tais era traduzida em políticas que buscavam a incorporação do sujeito indígena à cultura ocidental e pretendiam transitoriedade à condição de indígena. O ordenamento constitucional inaugurado em 1988 buscou trazer uma nova relação entre o Estado, a sociedade e os povos indígenas, ao estabelecer o direito originário, em seu artigo 231, que, ao prever o dever do poder público em proteger “a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos originários”, reconheceu não apenas o direito de ser indígena, mas também o direito de permanecer indígena (Osowski, 2017).


O rompimento com o assimilacionismo implica a interpretação do artigo 231, da Constituição de 1988, de modo que a posse das terras originalmente ocupadas pelas coletividades indígenas seja parte intrínseca da obrigação estatal de protege-las e de proteger os seus modos de vida. Isso, porque essas coletividades dependem da posse do território onde vivem ou de onde foram expulsas para garantir a sua existência, por preservarem um vínculo material e espiritual indissolúvel com as suas terras. Note-se, assim, que, diferentemente do que se pretendeu com o uso do termo “posse imemorial”, o direito originário à terra, previsto na Constituição de 1988, não diz respeito ao tempo ou ao momento histórico de presença na mesma terra, mas sim ao modo com que ela é ou foi ocupada, de acordo com tradições indígenas (Souza Filho apud Osowski, 2021). O direito originário, de que fala o artigo 231, CRFB\1988, é traduzido no direito à ocupação da terra para a manutenção dos modos de vida e da existência de coletividades indígenas, logo é fundamental para a garantia da dignidade humana de seus membros.


A aplicação do marco temporal é igualmente problemática por relegar ao esquecimento toda a resistência dos povos indígenas à histórica repressão sofrida por eles e praticada pelo poder público brasileiro. Como já dito, o atual texto constitucional tentou inaugurar uma nova relação entre o Estado e sujeitos membros de coletividades originárias, e todo o ordenamento jurídico pátrio anterior a ele assentava-se sobre uma lógica assimilacionista. Anteriormente a 1988, os instrumentos legais disponíveis para que os povos indígenas lutassem pela sua terra e, consequentemente, para a efetivação de sua dignidade eram escassos ou inexistentes. Em especial, o período da ditadura militar foi marcado por uma violação generalizada contra os direitos humanos desse grupo social, em nome da doutrina da segurança nacional e de uma política estatal desenvolvimentista, conforme reconhecido pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade.


A sistematicidade de violência durante os governos militares incluía a expulsão dos indígenas das suas terras diretamente pelo Estado ou, pelo menos, à revelia dele. Ora, o marco temporal estabelece como critério para a posse da terra a presença de povos indígenas onde a demarcação é requerida no momento da promulgação da atual Constituição, assim ele nega a violência representada pela remoção forçada de povos inteiros de seus territórios acontecida antes de 1988. Para completar, o marco temporal tem a capacidade de excluir a história da resistência indígena da memória coletiva brasileira e, em última instância, a identidade indígena da formação da identidade nacional. Vale lembrar que a memória coletiva é formada a partir de políticas públicas implementadas pelo Estado que elege quais fatos passados lembrar, por meio de monumentos, museus, programas escolares etc. Em Estados democráticos, a memória coletiva não é construída apenas por um grupo social, mas reúne as lembranças de diversas coletividades presentes sob a sua jurisdição, cabendo aos governos dar espaço para narrativas diferentes formuladas por pessoas diferentes. O marco temporal vai na contramão dessa prática, pois invisibiliza as experiências de resistência dos povos indígenas anteriores a 1988, além da violência histórica praticada contra eles por parte do poder público.


Ademais, a tese do marco temporal reforça o que Anibal Quijano (2000) chama de colonialidade do poder. Segundo o autor, na América Latina, as posições de poder são ocupadas historicamente por apenas uma raça minoritária que procura estabelecer ligações mais fortes com o Norte-ocidente do que com as demais raças habitantes dos seus países. Com isso, os Estados latino-americanos, mesmo quando democráticos, estariam praticando, a todo tempo, uma violência generalizada contra a maioria não branca das suas populações, da mesma maneira como acontecia durante o período colonial. Note-se que a colonialidade do poder, ao impedir que membros das coletividades indígenas ocupem posições de decisão no seio dos Estados em que habitam, exclui da memória coletiva regional a história contada a partir dos colonizados e, por consequência, invisibiliza a resistência indígena contra as violações sofridas continuamente contra si. No caso brasileiro, o período militar foi particularmente cruel com coletividades indígenas, e o marco temporal, não considera tal crueldade e abre espaço para a perpetuação da histórica violência colonial.


O julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.017.365 requer do Supremo Tribunal Federal coragem. Coragem para o rompimento definitivo com a logica assimilacionista, conforme pretendido pela Constituição da República de 1988. Coragem para o reconhecimento da histórica violação contra a dignidade humana dos povos indígenas praticadas pelo Estado brasileiro. Coragem para a inclusão à memória coletiva do Brasil de memórias formadas a partir de coletividades indígenas. Coragem para o afastamento, ainda que parcial, da colonialidade do poder. Coragem para respeitar, pelo menos, os milhares de sujeitos indígenas acampados do lado de fora do prédio da suprema corte para aguardar o julgamento de suas vidas, mesmo após diversos adiamentos.


Vitor Furtado de Melo, natural de Cascavel, porém criado em Varginha (MG), é bacharel em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro com pós-graduação em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional. Entusiasta do estudo da área das Relações Internacionais e da Análise de Política Externa. Direito Internacional Público, Direitos Humanos e atuação das cortes regionais de Direitos Humanos são suas áreas de maior interesse; especialmente sob uma abordagem crítica e pós-colonial. Possuí grande interesse em estudar o reconhecimento de novas dimensões dos Direitos Humanos e novas expressões dos Direitos Difusos e Coletivos.

Em suas horas livres, tenta consumir produções artísticas de diversas culturas, em forma de livros, filmes e séries e tentando dar certa preferência a conteúdos latino-americanos. Gosta também de cozinhar e cuidar das suas plantas; sempre escutando samba e MPB.


BIBLIOGRAFIA

QUIJANO, Aníbal. (2000). El fantasma del desarrollo en América Latina. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, v. 6, n. 2, p. 73-90, 2000.

FONTES, Ingrid Tereza de Moura; MARQUES, Clarissa. Povos originários e territorialidade: intersecções entre a Tese do Marco Temporal e a efetivação da posse territorial indígena. Revista Hum@nae. v. 15, n. 1, p. 1- 20, 2021. Disponível em: https://revistas.esuda.edu.br/index.php/humanae/article/view/791. Acesso em: 03 de set. de 2021.

OSOWSKI, Raquel. O Marco Temporal para demarcação de terras indígenas, memória e esquecimento. Mediações – Revista de Ciências Sociais. v. 22, n. 2, p. 320-346, 2017. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/32261. Acesso em 04 e set. de 2021.

CONECTAS Sur. Marco temporal: entenda por que julgamento no STF pode definir o futuro das terras indígenas. 24 de ago, de 2021. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/marco-temporal-entenda-a-importancia-do-julgamento-no-stf-para-os-indigenas. Acesso em 12 de set. de 2021.

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