Cooperação Brasil-África: Guiné-Bissau na era Lula

Foto: Jérémie Nicoläe Dron
O Brasil encontra muitas de suas raízes culturais no continente africano e, em particular, nas ex-colônias portuguesas: Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Se compartilharam o domínio do império lusófono, eles tiveram destinos bem diferentes e o Brasil pôde conhecer uma evolução significativamente mais importante que o tornou uma das maiores potências econômicas internacionais enquanto seus pares africanos, em grande parte, se mantiveram em um grau extremo de subdesenvolvimento.
Infelizmente, nesse quadro crítico, as liberdades tão fundamentais ao desenvolvimento nacional junto com o respeito aos Direitos Humanos sempre foram muito fragilizados, conduzindo ao atolamento em crises políticas, de saúde pública, educação ou ainda econômicas graves. É o caso da Guiné-Bissau sobre a qual concentraremos nossa análise. As relações diplomáticas do país africano com o Brasil são particularmente estratégicas hoje, tanto que a Folha de São Paulo, em maio de 2014, chegou a defini-la como a sua “nova vitrine internacional”.
Contudo, buscaremos entender como se desenvolveu a Política Externa Brasileira voltada à África e procuraremos focar nos dois mandatos do Luiz Inácio Lula da Silva, período quando, sem dúvida alguma, as iniciativas voltadas ao continente africano, e em particular à Guiné-Bissau, tiveram um crescimento significativo.
Se podemos enxergar claramente motivos econômicos nessa evolução, procuraremos definir qual a sua dimensão em termos de incentivo, proteção e promoção dos Direitos Humanos bissau-guineenses, analisando em particular os projetos de cooperação técnica desenvolvidos pela Agência Brasileira de Cooperação e compreendendo uma relação direta entre DH e as liberdades instrumentais defendidas pelo Amartya Sen.
As relações brasileiras com a África começaram a se estabelecer com o crescimento da Política Externa Independente (PEI) nos governos do Jânio Quadros e João Goulart quando se defendia a cooperação com os países do Terceiro Mundo e se abriram representações diplomáticas em particular no Senegal, Costa do Marfim, Nigéria e Etiópia.
É inclusive nessa época que se iniciam no Itamaraty grupos de trabalho sobre a África apesar do apoio Brasileiro às colônias portuguesas poder se tornar um obstáculo. Na opinião de um grande número de autores, não houve mudanças de rumo significativas em matéria de politica externa durante o regime militar.
Mesmo assim, pode-se notar a intensificação da divisão da África no Ministério da Relações Exteriores e o reforço na solidariedade terceiro-mundista. Vale destacar o posicionamento do Ernesto Geisel, que pressionou o governo português para reconhecer a independência da Guiné-Bissau além da favorecer as da Angola e Moçambique.
O Brasil foi aliás o primeiro país a reconhecer a independência angolana e o governo independente bissau-guineense, antes do Portugal. A cooperação Sul-Sul se intensifica, em particular com a instauração da cooperação para o desenvolvimento. A aproximação com a África, seus recursos naturais e econômicos se fortalece.
O último governo militar, sob a gestão do João Baptista de Oliveira Figueiredo, marcado pelo universalismo de sua política externa, vê a política africana e terceiro-mundista reforçada com a continuação da cooperação Sul-Sul. No meio a um contexto econômico internacional crítico para o Brasil, o país sofre em particular de uma falta de credibilidade no que diz respeito aos Direitos Humanos, por causa do seu regime militar e em particular do fato que não tinha assinado nenhum termo relativo a esse tema, até porque havia violações claras durante a ditadura.
Às vésperas da década perdida, o regime militar está prestes a deixar o poder e a redemocratização anuncia novos rumos para o país. Nesta, a agenda de Direitos Humanos será priorizada com, em particular, a participação no Pacto de São José, Pacto de DH nas Nações Unidas e Convenção contra a Tortura da ONU. Porém, em contexto de liberalização econômica, fica mais clara a dificuldade de compatibilidade entre democracia e Política Externa.
O governo de Fernando Henrique Cardoso marcou uma preocupação maior neoliberal procurando aproximação com Europa e Estados-Unidos, mas é realmente nos mandatos do Luiz Inácio Lula da Silva que as relações diplomáticas e econômicas do Brasil com a África se desenvolveram de maneira clara com, em particular, o aumento de implantação de embaixadas. Reflexo de posições tradicionais do Partido Trabalhador, essa mudança de rumo busca, entre outras coisas, alterar a geografia do poder mundial, com melhor equilíbrio nas relações Norte-Sul.
Como vimos anteriormente, durante o regime militar, o Brasil, que sofria com grandes violações internas a Direitos Humanos, não tinha credibilidade no plano internacional nesse tema. O chanceler Azeredo da Silveira, de acordo com a política de redemocratização de Geisel, será o primeiro a abordar esse assunto na 23a Assembleia Geral das Nações Unidas, comunicando a participação do Brasil na Comissão de Direitos Humanos.
A administração Sarney marca o estabelecimento de uma nova agenda específica onde o país passará a atuar internacionalmente em prol ao respeito desses direitos fundamentais. A Constituição Brasileira de 1988 registra de maneira profunda essa mudança no artigo 4° – II: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: prevalência dos direitos humanos”.
Em 1993, na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, é estabelecido que o Brasil desenvolverá um Plano Nacional de Direitos Humanos, criado efetivamente em 1994. FHC falará então sobre “essa vontade do nosso povo, de não apenas falar de Direitos Humanos, mas de garantir a sua proteção”. O Itamaraty passa a definir princípios de atuação em matéria de DH como, em particular a universalidade dos mesmos e a necessidade da cooperação internacional para sua proteção de promoção.
Em 1997 é criada a Secretaria de DH da Presidência e, já na era Lula, o Comitê Brasileiro de DH (2005). No ano de 2006, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas torna-se Conselho de DH e o Brasil assume o primeiro de seus três mandatos, mostrando claramente a sua preocupação com o tema.
O Brasil foi o primeiro país a reconhecer o governo independente da Guiné-Bissau e abriu relações diplomáticas antes de assinar um termo básico de cooperação em 1978. Vimos que nos dois mandatos de Lula, os projetos voltados à África ganharam força dentro de uma perspectiva social e econômica. Sendo assim, as inciativas se multiplicaram no intuito de apoiar a Guiné-Bissau e muitas dessas com forte preocupação em Direitos Humanos em um país com quadro tão alarmante de pobreza e baixo desenvolvimento.
Dentro desse contexto específico, articulados pela Agência Brasileira de Cooperação, diversos projetos visando suporte estratégico ao que podemos chamar, e seguindo o Amartya Sen, de liberdades instrumentais foram realizados ou ainda estão em execução.
Com vista na estabilidade política, fundamental para a evolução do país e a luta contra as graves violações a Direitos Humanos, foram idealizados projetos específicos de apoio ao fortalecimento da Assembleia Nacional Popular Bissau-Guineense, formação de quadros para o governo e de quadros de comunicação institucional para os parlamentos, fortalecimento da gestão pública, apoio às eleições presidenciais, além da capacitação para diplomatas dos estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Podemos ainda citar projetos buscando aprimoramento na educação; como os de inclusão digital (telecentros), formação de professores, educação à distância e ensino da língua portuguesa ou ainda de educação de jovens e adultos com o projeto de centro de formação profissional e promoção social, desenvolvido a partir de 2003 em parceria com o Senai; com objetivo de qualificar jovens e adultos, e gerar renda para contribuir com o esforço de recuperação econômica do país e, ainda, alavancar o desenvolvimento social.
Também, em parceria com a Unesco e os Ministérios de Educação dos respectivos países, foi acordada a construção de uma escola com gestão compartilhada e funcionamento inspirado na educação integral. Outras inciativas ainda procuram apoiar estruturalmente o país com a formulação e monitoramento do programa nacional para a universalização do registro civil de nascimento, capacitação de militares, melhorias estruturais agrícolas e de saúde, entre outras.
Contudo, podemos perceber que a grande maioria das ações desenvolvidas buscam o desenvolvimento social e a melhoria do quadro de ampliação e acesso às liberdades fundamentais e, consequentemente, ao respeito aos Direitos Humanos no país. Pudemos observar que, durante os governos do Lula, os projetos desenvolvidos em parceria com países do continente africano, e em particular a Guiné-Bissau, não podiam se resumir meramente a um potencial fortalecimento econômico do Brasil na região, apesar disso ter sido um incentivo claro a esse movimento.
Ao olharmos pelo espectro das liberdades instrumentais, descritas pelo Amartya Sen como fundamentais ao desenvolvimento, vimos que a grande maioria das ações realizadas pelo Ministério das Relações Exteriores Brasileiro, através da ABC, têm em sua essência uma forte preocupação com o fortalecimento destas. Entre elas, com certeza, as que mais sofreram durante a história do país africano são as liberdades políticas e garantias de transparência.
Assim, percebemos que inúmeras inciativas de apoio aos processos de implantação da democracia foram efetuadas. Também verificamos, em particular com os projetos desenvolvidos em parceria com o Senai e a Unesco, a necessidade de contribuir com mais facilidades econômicas e oportunidades sociais. Por fim, e completando com a quinta liberdade instrumental, a segurança protetora, vimos que o Brasil também executou propostas de capacitação, em particular dos militares bissau-guineenses.
Fica claro que o Brasil também busca dentro de sua atuação na África um real impacto positivo e duradouro em termos de Direitos Humanos, talvez possa ser interpretado como uma forma de se redimir no cenário internacional de sua época ditatorial. A era Lula marcou sem dúvida alguma o auge nessa perspectiva mas estamos com direito de nos perguntar como evoluirá esse quadro nos anos que vêm, já que pode-se observar uma queda no primeiro mandato da presidente Dilma.
De tal forma que a Folha de São Paulo, pouco menos de um ano após ter noticiado que a Guiné-Bissau era a “nova vitrine internacional do País, publicou artigo apontando que o “Brasil recua e reduz projetos de cooperação e doações para a África”.
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