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Covid-19, Big Pharma e a questão da Saúde como Bem Público Global

Edson José de Araujo

O controle das doenças infecciosas tem sido a essência da diplomacia internacional há mais de 100 anos. Contudo, a despeito dos muitos avanços, as ameaças à saúde global continuam gigantes, e podem estar avultando-se, principalmente com o evento da COVID-19, e, com o avanço da integração econômica global, a interdependência entre organizações, corporações e Estados para tentar minimizar o problema, se aprofunda.

O conhecimento sobre a saúde mundial possui muitos aspectos de bem público onde, através de definição, pode-se elencar algumas de suas características tais como bens que com frequência precisam ser fornecidos por mecanismos não pertencentes ao mercado ou por mecanismos modificados de mercado. São reconhecidos por trazer benefícios dificilmente restringíveis a um único consumidor que faz usufruto deles “gratuitamente” e é apresentado como indivisível (não rivalidade no consumo), referindo-se à capacidade de todos se beneficiarem do bem público uma vez que este é produzido e, a partir de sua importância para a comunidade mundial, não deve ser excludente, referindo-se à incapacidade de excluir-se qualquer indivíduo ou grupo de seus benefícios (Stiglitz, 2012).

No caso da vigilância epidemiológica, todos os países se beneficiam de algum modo do conhecimento de surto de doenças infecciosas ocasionadas além de suas fronteiras, posto que esse conhecimento permite aos países tomarem medidas para a proteção de sua população e de prepararem suas instituições médicas para lidar com doenças ameaçadoras. E, se um conhecimento aprimorado conduz a atividades internacionais de controle das doenças em seus focos, muitos países se beneficiam, pelo menos em teoria.

Desde que a organização Mundial de Saúde (OMS) decretou estado de pandemia global, em 11 de março de 2020, não só tiveram início os protocolos internacionais de segurança, como também, o início de vários trabalhos de pesquisa fármaco-laboratoriais na busca de um antiviral para a COVID-19. A princípio, esses trabalhos foram considerados, sob os holofotes da grande mídia, como um atendimento a preceitos humanitários globais que buscava uma solução sanitária para um mal nunca visto antes em tamanho e tempo de propagação.

As Big Pharma, nome dado às empresas globais do ramo farmacêutico, se tornaram agentes propagadores de uma “esperança” mundial, mas, com o passar do tempo, o tecido humanista que encobre suas ações aos poucos vem sendo rasgado, demonstrando uma verdade já conhecida e inerente desses agentes corporativos internacionais. Em âmbito internacional, Big Pharma se caracteriza como um oligopólio diferenciado, baseado na inovação e nas ciências do desenvolvimento de medicamentos, pois a criação de novos produtos é prioritária em relação às economias de escala e aos custos de produção. As empresas que lideram o setor são multinacionais de grande porte e atuam de forma global no mercado, tendo como principal fonte de diferenciação de produtos, por um lado, a pesquisa e desenvolvimento e, por outro lado, o marketing. A principal maneira de a indústria se apropriar de resultados oriundos de seus esforços de P&D é a patente, que garante o monopólio temporário de vendas. A liderança mercadológica é conquistada em segmentos de mercado particulares (empresas/governos), mediante diferenciação de produtos.

Grandes corporações farmacêuticas lucram em grande parte com o desenvolvimento de medicamentos para condições crônicas que têm um vasto mercado de longo prazo entre pessoas (ou instituições) capazes de pagá-los. As empresas, então, se lastreiam em patentes por décadas, gastando mais em comercializar seus medicamentos atuais do que pesquisar novos medicamentos. Uma pandemia, que pode ter um fim repentino assim como foi o seu início, é muito incerta para justificar o tempo das Big Pharma, como foi vista pela forma como a pesquisa da SARS (outra forma de coronavírus) foi descartada à medida que a epidemia diminuiu e, segundo especialistas, foi uma tragédia porque poderia ter ajudado enormemente com a localização de tratamentos para a COVID-19.

A indústria farmacêutica defende sua relutância em desenvolver vacinas para doenças infecciosas como o coronavírus, pois o processo pode levar vários anos até o momento em que a crise pode ter passado e com ela a demanda pela vacina. E por isso é visto como um risco caro para as grandes farmacêuticas empreenderem, especialmente porque a principal prioridade do setor é o lucro e não a saúde pública.

A relutância comercial em investir em vacinas para doenças infecciosas deixou o financiamento público assumir um papel vital na corrida para encontrar uma antiviral. Estima-se que entre um a dois terços de toda a pesquisa e desenvolvimento em saúde global vem do erário público. No entanto, a pesquisa é frequentemente transferida para players comerciais que, em seguida, comercializam o produto final a preços extorsivos para prestadores de serviços de saúde e pacientes, no caso da vacina contra o coronavírus está entre 3 e 145 dólares por dose, dependendo do tipo de vacina. O contribuinte indiretamente acaba pagando duas vezes – primeiro pela pesquisa e depois em preços altos no momento do fornecimento da vacina.

Por muito tempo, as Big Pharma escolheram as áreas financeiramente lucrativas da saúde pública, deixando as áreas de pesquisa mais arriscadas e incertas nas mãos do setor público. É um caso clássico de socializar riscos e privatizar recompensas. Anexar condições ao financiamento público e desenvolver políticas robustas de acesso são os primeiros passos vitais para garantir que os fundos públicos levem a tecnologias de saúde que beneficiem as populações, no entanto, não se pode ignorar que há problemas com o próprio sistema.

A propriedade intelectual, essencialmente patentes e direitos autorais, tornou-se uma questão comercial em meados da década de 1990, quando o Acordo sobre Aspectos Relacionados ao Comércio de Direitos de Propriedade Intelectual, ou TRIPS, foi negociado na OMC (Organização Mundial do Comércio). A TRIPS estendeu as proteções de patentes em todo o mundo, permitindo que a empresa se beneficie através de patentes por um mínimo de 20 anos, durante o qual eles são capazes de ditar quem pode usar suas criações e a que preço.

Medicamentos, vacinas e tratamentos não são apenas luxos de consumo dos que o indivíduo pode abandonar se o preço for muito alto. Se a pessoa está doente, os medicamentos fazem a diferença entre doença e boa saúde, e às vezes entre a vida e a morte. Eles devem ser acessíveis para todos que precisam deles como um autêntico Bem Público Global.

De certo, existem políticas globais de desenvolvimento onde a governança global da saúde fundamenta-se no reconhecimento de que a saúde é fortemente influenciada por instituições e políticas externas ao setor, como comércio, propriedade intelectual, trabalho ou meio ambiente, entre outros. A partir dessa visão, grupos internacionais devem ressaltar a importância das flexibilidades do Acordo TRIPS para promover a saúde das pessoas e o acesso aos medicamentos minimizando os efeitos dos acordos comerciais gerais impostos pelos países desenvolvidos aos países em desenvolvimento, e utilizados por empresas transnacionais para contrapor-se a leis nacionais que lhes sejam prejudiciais, inclusive na saúde. Os efeitos negativos sobre a saúde podem ocorrer pela pressão sobre os Estados para a suavização de normas e padrões técnicos, ausência de instrumentos contra os abusos e imposição de regras de propriedade intelectual, que podem causar obstáculos ao acesso a medicamentos e a outros insumos para a saúde.

É verdade que algumas empresas prometeram produzir medicamentos “sem lucro” durante a pandemia, mas, num mundo corporativo onde a regra principal é lucrar, essas mesmas empresas estão tentando obter proteção especial de patentes com base na alegação de que seus medicamentos terão um mercado potencial limitado, o que é de se estranhar pois a ação desses medicamentos poderá ter abrangência global.

Mas, além da questão exploratória por parte das Big Pharma, que de certa forma minimiza a abrangência da ação efetiva contra o coronavírus, existe também a questão humanitária. A princípio, criou-se uma ideologia de que eventos como uma pandemia seriam instrumentos niveladores, onde não importasse sua classe social, qualquer indivíduo padeceria sobre os efeitos maléficos da doença. Mas isso está longe de ser verdade, e embora as doenças mortais sejam, naturalmente, uma grande preocupação para todos nós, o impacto sobre aqueles que são mais pobres é muito mais pesado, pois são expostos à um risco maior por conta de sua condição (moradia, trabalho, mobilidade), e se afetados pela doença, terão menos chances de se recuperar ou até mesmo de sobreviver. Isso demonstra, mais uma vez, o grande problema da desigualdade que está se tornando uma cicatriz no mundo, e está na raiz de tantos problemas que a humanidade enfrenta.

Edson José de Araujo, Mestrando no programa de Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais (PUC-SP), Especialista em Política e Relações Internacionais (FESPSP), MBA em Economia de Empresas (FEA-USP), Bacharel em Ciências Econômicas (CUFSA). Especialista em Docência no Ensino Superior (SENAC) e articulista no Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI).

Referências

BURANYI, Stephen. How profit makes the fight for a coronavírus vaccine harder. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/04/market-coronavirus-vaccine-us-health-virus-pharmaceutical-business>. Acesso em 27/11/2020.

CHOW, Heidi. The race for a coronavirus vaccine proves big pharma isn’t fit for purpose. Disponível em: <https:// www.globaljustice.org.uk/blog/2020/mar/18/race-coronavirus-vaccine-proves-big-pharma-isnt-fit-purpose>. Acesso em 27/11/2020.

DEARDEN, Nick. Big Pharma can’t be trusted to solve coronavírus. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/opinions/2020/3/10/big-pharma-cant-be-trusted-to-solve-coronavirus/>. Acesso em 28/11/2020.

DEARDEN, Nick. Big Pharma is not willing to help us defeat COVID-19. Disponível em: <https://www.aljazeera.com/opinions/2020/10/18/big-pharma-is-not-going-to-help-the-world-defeat-covid-19>. Acesso: 28/11/2020.

KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle; STERN, Marc A. Bens Públicos Globais. Tradução de Zaida Maldonado. Rio de Janeiro. Record, 2012.

ROSÁRIO, Mariana. Covid-19: o preço estimado das mais avançadas vacinas em desenvolvimento. Disponível em: <https://Covid-19: o preço estimado das mais avançadas vacinas em desenvolvimento>. Acesso em 28/11/2020.

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