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Descolonização e o direito humano à memória

Ainda em fins do século XIX, ao buscar romper com a lógica dualista entre civilização e barbárie, o cubano José Maria Martí escreveu, em seu famoso artigo Nossa América, que “ […] aquele que, por vontade ou esquecimento, deixa de lado uma parte da verdade tomba, afinal, vítima da verdade que lhe faltou”[1]. À época, Martí referia-se à formação das jovens repúblicas da Hispano-américa, frente à sedutora possibilidade de se repetir modelos importados do Norte, sem se preocupar com as suas peculiaridades e com o passado colonial que as havia assolado. Aqui, já é possível notar a valorização dada pelo autor ao conhecimento da própria história, de modo a tratar o “problema da independência” não como uma “mudança de forma”, mas como uma “mudança de espírito”. Já no século XX, no contexto das lutas de libertação afro-asiáticas, Frantz Fanon vem dizer que a descolonização é um processo histórico; logo ela só seria inteligível enquanto um “movimento historicizante”[2]. Fanon trata, mais especificamente, da necessidade de rompimento com o sistema colonial, que serviu de instrumento para colonizadores moldarem o imaginário dos colonizados acerca de si próprios. Dessa forma, descolonizar, em Fanon, significa criar “homens novos”.

Por meio de certo esforço de aproximação de ideias e fatos históricos separados pelo decurso do tempo, é possível perceber alguma equivalência entre os escritos dos dois autores em torno da valorização da memória. Em mais um esforço de proximidade, nota-se que essa mesma memória, já valorizada nos séculos passados, integra, hoje, o rol dos Direitos Humanos. Uma das características de tais prerrogativas é a historicidade, pela qual, com o passar do tempo e pela ação reivindicatória da sociedade, se alarga aquilo que é protegido, estabelecendo-se padrões mínimos cada vez maiores. A memória foi aqui incluída na esteira desse avanço histórico, por se reconhecer que a sua existência constrói identidades individuais e coletivas.

O tema ganha relevo quando se consideram episódios de violência, que, uma vez cessados, integram a história de pessoas e de sociedades inteiras e levam vítimas à busca por justiça. Em situações assim, efetivar o direito à memória é encerrar a violência não só material, mas também psicológica. Isso deve ser feito pela apuração séria de fatos ocorridos e pelo reconhecimento da gravidade dos acontecimentos. Em âmbito coletivo, o direito à memória acerca de violações generalizadas de Direitos Humanos promovidas por entes estatais encontra certa polêmica em torno de sua efetivação. A polêmica ganha contornos internacionais muito claros ao se considerar a história colonial, incontestavelmente permeada por abusos aos Direitos Humanos; e o direito humano à memória acerca desses abusos ainda é muito pouco efetivado.

Ora, a não efetivação de direitos gera a reclamação por eles; e é isso que parece acontecer nos recentes movimentos de derrubadas de estátuas de maio e junho de 2020. Eles foram motivados pelo assassinato do cidadão negro estadunidense George Floyd, vítima de violência policial e racial; e ampliaram-se, geograficamente e em termos de demandas, chegando a outros continentes e retomando a velha exigência por respostas mais robustas ao passado colonial de abusos sistêmicos. Os protestos têm indiscutível protagonismo negro e mostram o caráter continuado da violência colonial, que atravessa décadas enquanto persiste uma narrativa branca e única. E é, justamente, a manutenção da narrativa do colonizador o principal impeditivo do gozo do direito à memória pelo Sul global e pelos povos marginalizados. Memória significa ligação entre o passado e o presente por meio da maneira como a história é contada; logo define as respostas emocionais presentes dadas a eventos passados[3]. Dessa forma, manter monumentos representativos de figuras responsáveis pela violência colonial em lugares de homenagem conta a história unicamente pela perspectiva dos antigos colonizadores e arrasta essa mesma violência para o presente, ao negar aos povos colonizados a efetivação de seu direito humano à memória. Em entrevista no dia 22 de junho de 2020 ao programa Roda Viva, o filósofo e jurista Silvio de Almeida lembrou que a cidade é um espaço político[4], de modo que os monumentos dispostos por ela lembram as pessoas dos seus lugares nesse espaço, chamando atenção para a necessidade de reconfiguração de elementos ali presentes por meio de um diálogo amplo.

Como já dito, a demanda pelo claro reconhecimento dos abusos coloniais do passado não é algo novo, sendo difícil precisar, com exatidão, o seu início. Ainda assim, é possível afirmar que uma das primeiras expressões dessas demandas surgem já nas primeiras décadas do pós-Segunda Guerra Mundial, com os movimentos pelo retorno de bens artísticos e culturais aos seus países e povos de origem, após terem sido saqueados dali durante o processo de colonização. Essas demandas por restituição podem ser entendidas também como reclamação pela efetivação do direito humano à memória e pela formação de identidades coletivas de povos vitimados enquanto sujeitos de suas histórias, e não enquanto objetos da política internacional. Ademais, as demandas assumiam o caráter de denúncia das espoliações do patrimônio artístico dos colonizados como parte da violência desumanizante e racista, típica da prática colonial, e como instrumento da subordinação de corpos, indivíduos e povos. Elas datam da década de 1960, vindas de países da América Latina, e da década de 1980, vindas de países da África; porém ainda encontram resistência em serem atendidas por parte dos antigos colonizadores.

Na América Latina, os povos indígenas assumem o protagonismo do discurso decolonial. Os anos 1990 e 2000 foram palco de uma tendência à maior escuta das suas exigências, principalmente para maior participação nos processos políticos de formulação de políticas públicas, face à tradicional ausência de memória de seu protagonismo nos processos de libertação nacional do século XIX. Principalmente no Equador e na Bolívia, esses povos ganharam voz[5], nos seios dos respectivos governos, para reclamar a ausência de representatividade na construção dos seus Estados, como fruto de um passado colonial e de democracias construídas em bases elitistas, proprietárias e raciais. Tais demandas trouxeram importantes conquistas, como o reconhecimento constitucional do Estado multicultural equatoriano e do Estado plurinacional boliviano. Ocorre que a realidade impõe desafios maiores do que a (por vezes, não tão) simples previsão de direitos na constituição e resulta em conflitos constantes pelo uso da terra, ainda por uma lógica permeada pelas relações Norte e Sul. Para piorar, mesmo as conquistas constitucionais parecem estar em xeque diante do cenário político sul-americano recente.

Nota-se que a apropriação do passado colonial como forma de romper com a lógica de dominação ainda é um desafio para a sociedade internacional e passa necessariamente pela efetivação do direito humano à memória. A memória enquanto direito só se torna eficaz por um processo educacional de reconhecimento indubitável dos abusos coloniais, de modo a atingir todos os aspectos da vida humana e, finalmente, romper com a hierarquização cultural de povos. Esse reconhecimento deve incluir a ressignificação de espaços públicos, a restituição de bens artísticos saqueados e a inclusão de povos originários nos regimes democráticos. A demanda pela memória nada mais é do que a urgente busca pelo posicionamento de nações assoladas pelo passado colonial enquanto sujeitos políticos atuantes e não meros objetos.

Vitor Furtado de Melo, natural de Cascavel, porém criado em Varginha (MG), é bacharel em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro com pós-graduação em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional. Entusiasta do estudo da área das Relações Internacionais e da Análise de Política Externa. Direito Internacional Público, Direitos Humanos e atuação das cortes regionais de Direitos Humanos são suas áreas de maior interesse; especialmente sob uma abordagem crítica e pós-colonial. Possuí grande interesse em estudar o reconhecimento de novas dimensões dos Direitos Humanos e novas expressões dos Direitos Difusos e Coletivos. Em suas horas livres, tenta consumir produções artísticas de diversas culturas, em forma de livros, filmes e séries e tentando dar certa preferência a conteúdos latino-americanos. Gosta também de cozinhar e cuidar das suas plantas; sempre escutando samba e MPB.

Bibliografia

AUCHTER, Jessica. “Theorizing haunting and the international aft er genocide: the cases of Rwanda and Darfur”. Ethnicity Studies, 2015/2. P. 36–56 © Lithuanian Social Research Centre, 2015.

BRAGATO, Fernanda e DE PAULA, Luciana Araujo. “A memória como Direito Humano”. Relatório Azul. 2011, 2011, pp.129-141.

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. “Especialistas comentam derrubadas de monumentos e estátuas pelo mundo” (Notícia). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/especialistas-comentam-derrubada-de-estatuas-pelo-mundo/. Publicado em: 16 jun. 2020.

FANON, Frantz. “Os Condenados da Terra”. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. P:26.

MARTÍ, José. “Nossa América”. Tradução de Maria Angélica de Almeida Triber. São Paulo: HUCITEC, 1983. p:194-201.

MENEZES, Paula Santos. ÁLVAREZ, Estefania Piñol. “A descolonização dos Museus e a restituição das obras de arte africanas: o debate atual na França”. CSOnline – REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS, (29), 23. https://doi.org/10.34019/1981-2140.2019.26686.

[1] MARTÍ, José. Nossa América. Tradução de Maria Angélica de Almeida Triber. São Paulo: HUCITEC, 1983. p:194-201.

[2] FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. P:26.

[3] Segundo Auchter: “Memory blurs the lines of past and present. It is not fully of the past, because it is reliant on our present emotional responses to the events of the past. However, it is not fully of the present, because it does recall a past and at times leads us to relive a past through commemorative practices” [tradução livre: A memória borra a linha do passado e do presente. Ela não é totalmente do passado, porque é dependente das nossas respostas presentes emocionais a eventos do passado. Todavia, não é totalmente do presente porque chama de volta um passado e, por vezes, leva-nos a reviver um passado por meio de práticas comemorativas].

[4] https://www.hypeness.com.br/2020/06/silvio-almeida-no-roda-viva-tem-gente-chorando-por-estatua-mas-nao-e-capaz-de-chorar-quando-morre-um-negro/

[5] https://cimi.org.br/2006/01/24346/

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