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Discurso de Ódio, Redes Sociais e Extremismo: Uma Provocação Para Reflexão

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    CERES
  • 19 de mar.
  • 10 min de leitura

Flávia Abud Luz


O discurso de ódio tem se tornado um dos principais desafios da política internacional no século XXI, visto que pode ser instrumentalizado por líderes e grupos políticos para fins estratégicos, muitas vezes observamos ações que permitem violações de direitos humanos. O avanço das tecnologias digitais e o crescimento das redes sociais amplificaram discursos extremistas, contribuindo para a polarização política, o fortalecimento do populismo e o aumento das tensões diplomáticas.  


O atual processo de amplificação de discursos de ódio nos Estados Unidos e na Europa têm apresentado características importantes que merecem uma análise. Porém, antes de seguir para tais características acredito que seja importante primeiro pensar na evolução da referida forma de discurso, bem como seus os impactos diretos na política internacional ao longo do tempo. 


O presente texto busca fazer uma breve reflexão acerca das consequências mais diretas do discurso de ódio na política internacional nos últimos anos, destacando o seu uso político, considerando eventos políticos e sociais desde a crise de refugiados do mediterrâneo (203-2015), a crise dos refugiados ucranianos; as declarações do ex-presidente norte-americano Donald Trmup e a invasão à Casa Branca (2021) e, recente o crescimento de um discurso xenofóbico nos Estados Unidos e na Europa.


Discurso de ódio: a evolução de um conceito 

O discurso de ódio pode ser definido como qualquer forma de expressão que incite violência, discriminação ou hostilidade contra indivíduos ou grupos com base em características como raça, etnia, religião, gênero, orientação sexual ou nacionalidade. De acordo com Jeremy Waldron (2012), o discurso de ódio não se limita a ofensas individuais, mas enfraquece a dignidade e a participação social de certos grupos, comprometendo os princípios democráticos e os direitos humanos.


No âmbito jurídico, por exemplo, a definição do discurso de ódio tem sido desenvolvida ao longo do tempo a partir de uma série de convenções e tratados internacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece que a liberdade de expressão é um direito fundamental, mas estabelece que sua proteção não é absoluta quando viola a dignidade humana ou ameaça à segurança coletiva. Esse entendimento é refletido em documentos como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), que impõe aos Estados a responsabilidade de criminalizar manifestações de ódio racial.


A preocupação da sociedade com relação às consequências do discurso de ódio ganhou relevância após a Segunda Guerra Mundial, principalmente quando o holocausto evidenciou o papel da propaganda discriminatória na incitação ao genocídio.  Naquele contexto o Tribunal de Nuremberg (1945-1946) estabeleceu precedentes ao condenar líderes nazistas que utilizaram discursos racistas para justificar crimes contra a humanidade (Schabas, 2000). Nos anos seguintes, tratados internacionais reforçaram a necessidade de combater esse tipo de discurso, culminando na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), que proíbem expressões que incitem o ódio e a violência. 


No entanto, é possível observar que as abordagens sobre o tema variam entre os países, principalmente por conta do já clássico debate filosófico sobre quais seriam os limites da liberdade de expressão. Enquanto países como os Estados Unidos mantêm uma interpretação mais ampla da liberdade de expressão, protegendo até mesmo discursos ofensivos (Heinze, 2016); outros como Alemanha, França e outros países da União Europeia elevaram o questionamento ao buscarem elaborar legislações mais rigorosas contra discursos de ódio, refletindo diferentes tradições jurídicas e culturais. Explico.


Existe um debate contínuo sobre os limites entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio. Filósofos como John Stuart Mill (1859) defendiam a liberdade de expressão como um pilar da democracia, enquanto autores contemporâneos como Jeremy Waldron (2012) apontam que certos discursos minam a própria democracia ao promoverem exclusão e violência de maneira contínua. 


O debate sobre os limites entre liberdade de expressão e a configuração do discurso de ódio como apresentado por Waldron (2012) talvez seja um dos mais controversos no cruzamento dos campos dos direitos humanos, da política internacional e do direito internacional. 


De um lado, existe um entendimento de que a liberdade de expressão é considerada um pilar fundamental da democracia, permitindo a troca de ideias e o questionamento de autoridades.  Nesse sentido, John Stuart Mill, em On Liberty (1859), argumentou que até mesmo ideias ofensivas devem ser protegidas, pois a censura poderia limitar o desenvolvimento do pensamento crítico e a busca pela verdade. Porém, no contexto contemporâneo, discursos de ódio frequentemente ultrapassam o direito à livre expressão ao incitarem violência, discriminação e exclusão social, colocando em risco a própria democracia que a liberdade de expressão deveria sustentar. Essa tensão se torna ainda mais complexa quando governos utilizam a defesa da liberdade de expressão como pretexto para tolerar discursos que marginalizam minorias ou silenciam opositores políticos.

Por outro lado, filósofos e juristas como Waldron (2012) defendem que a sociedade tem a responsabilidade de limitar discursos que atacam a dignidade de determinados grupos, considerando que esses discursos não apenas promovem violências simbólica e física, mas também enfraquecem o tecido social ao normalizarem a intolerância. 


A regulação do discurso de ódio, no entanto, apresenta desafios significativos relacionados aos níveis jurídico, político e tecnológico. Talvez um dos principais desafios seja justamente a delimitação clara do que constitui discurso de ódio, ou seja, encontrar um entendimento ou algum tipo de denominador comum para identificar tal forma de discurso, visto que as sociedades possuem interpretações distintas sobre o que se deve ou não ser considerado ofensivo ou perigoso.  


Além da dificuldade de criar normas internacionais uniformes existe o receio de que legislações contra o discurso de ódio possam ser usadas como instrumento de censura por governos autoritários para silenciar opositores políticos, jornalistas e ativistas. Outro obstáculo relevante diz respeito à regulação das plataformas e redes sociais que se tornaram o principal meio de disseminação do discurso de ódio, principalmente nos últimos dez anos. 


Redes Sociais, discurso de ódio e discussões sobre regulamentação 

As redes sociais tornaram-se um dos principais veículos de disseminação do discurso de ódio ao longo dos últimos anos, amplificando sua visibilidade e impacto global. Plataformas como Facebook, Twitter e YouTube permitem a circulação rápida de informações, o que, por um lado, fortalece o debate democrático, mas, por outro, facilita a propagação de narrativas discriminatórias e extremistas, ou seja, as plataformas digitais atuam como “moderadoras de conteúdo” mas enfrentam desafios significativos ao tentar equilibrar a liberdade de expressão e a remoção de discursos prejudiciais. 


Episódios recentes da política internacional – desde a crise dos refugiados ucranianos; as declarações do ex-presidente norte-americano Donald Trmup e a invasão ao Capitólio (2021) e, recente o crescimento de um discurso xenofóbico nos Estados Unidos e na Europa –  são emblemáticos no sentido de discutirmos como plataformas e redes sociais como o Facebook e o Twitter podem ser usadas para incitar o ódio contra minorias, contribuindo para a violência, crises humanitárias e conflitos internacionais. Tais plataformas atuam internacionalmente, mas estão sujeitas a legislações nacionais distintas, tornando difícil a aplicação de regras padronizadas. 


Os algoritmos dessas plataformas são projetados para maximizar o engajamento dos usuários, favorecendo conteúdos altamente emocionais e polarizadores, ou seja, os usuários são constantemente expostos a conteúdos que reforçam suas crenças preexistentes, criando bolhas informacionais e reduzindo o espaço para o diálogo democrático (Sunstein, 2017).


Essa dinâmica é explorada por diferentes atores políticos que utilizam estratégias de desinformação para manipular a opinião pública e desestabilizar regimes democráticos (Tufekci, 2018). Como resultado, as redes sociais não apenas amplificam discursos de ódio, mas também contribuem para o enfraquecimento das instituições democráticas e para o aumento da intolerância em escala global. 


Embora iniciativas, como o Regulamento de Serviços Digitais da União Europeia (2022), busquem responsabilizar as plataformas pelo conteúdo disseminado, existe um debate contínuo sobre até que ponto empresas privadas devem ter o poder de decidir o que pode ou não ser dito online. Outro desafio significativo é de ordem técnica, visto que a moderação automatizada de conteúdo ainda tem dificuldades para distinguir discurso de ódio de sátira, ironia ou debates políticos legítimos, o que pode resultar tanto em censura excessiva quanto na permanência de conteúdos prejudiciais. 


Polarização, bolhas, tensões diplomáticas e conflitos internacionais 

Como apontei até aqui, é possível observar que a intensificação do discurso de ódio nas redes direciona as sociedades cada vez mais para um processo de polarização política que favorece a ascensão de governos populistas que utilizam do ódio como ferramenta política; além de permitir o acirramento de tensões diplomáticas e as violações de direitos humanos no contexto de conflitos internacionais.  


Agora pretendo destacar eventos políticos internacionais recentes que tiveram importante repercussão para as discussões sobre as relações perigosas entre os discursos de ódio e as plataformas e redes sociais. 


Nos Estados Unidos temos dois eventos que acredito que merecem uma maior análise, a saber: a) radicalização que culminou na invasão ao Capitólio, no emblemático 06 de janeiro de 2021; e b) a atual retórica anti-imigração do governo Trump. 


O primeiro evento, a radicalização que culminou na invasão ao Capitólio (2021), após um processo contínuo de uso do discurso de ódio e polarização, além da influência mais direta causada pela figura do naquele momento candidato vencido e ex-presidente, Donald Trump, que utilizou sobretudo o Twitter para se expressar e mobilizar ações violentas que questionavam a validade dos resultados da votação. 


A ação foi emblemática por diversos motivos: a influência exercida por Trump, o contexto da pandemia de covid-19 e a polarização do país ao longo dos meses que antecederam o pleito; sendo que o elemento interessante aqui é justamente observar o que Benker et al (2018) discutiam sobre a ascensão de redes de desinformação e discursos que deslegitimam processos democráticos. No imediato momento da invasão ao Capitólio as cenas de brutalidade contra as forças policiais e a degradação física do espaço chamaram a atenção do mundo por serem a demonstração mais evidente das perigosas consequências do uso de plataformas e redes sociais para divulgar conteúdo violento. 


As discussões, então, passaram a se voltar justamente para o elemento que apontei anteriormente: o estabelecimento de responsabilidades por parte das empresas que administram tais plataformas para regular tais conteúdos, seja por meio de proibições (na ideia de inserção de limites nos termos de uso) ou até mesmo na retirada do que fosse entendido como ofensivo ou possível de incitar qualquer forma de violência. 


A principal dificuldade aqui o que diz respeito à regulamentação é justamente a abrangência das operações das empresas e também o que poderia ser considerado como mal uso do poder de moderação de conteúdo, explico. Aqui a preocupação esteve ligada ao entendimento de que tentativas de regulamentação nacionais poderiam ser utilizadas por governos para justificar ações que cerceavam a liberdade de expressão, ou seja, novamente caíamos aqui no debate sobre os limites da liberdade de expressão. 


O segundo evento, a atual retórica anti-imigração do governo Trump, já tinha sido um pilar de sua campanha presidencial em ganhou maior notoriedade não apenas no processo de debate presidencial ainda em 2024, mas também logo quando ocorreu a posse do presidente. Durante o mês de fevereiro uma série de pronunciamentos de Trump apresentaram a migração e os imigrantes como um “problema social e de segurança” que deveria ser tratado com políticas mais rígidas, como, por exemplo a separação de famílias a fronteira com o México e as restrições à entrada de cidadãos de países de maioria muçulmana. 


O novo governo de Trump (janeiro de 2025 – atualmente) já apresentou no primeiro mês de sua formação o tema da imigração como central e aqui passou a tratar imigrantes (sejam indocumentados ou não) como uma ameaça de segurança em um movimento que talvez só tenha comparação com as ações realizadas pelo governo americano contra a população japonese no contexto da Segunda Guerra Mundial. Tal processo foi acompanhado de medidas que combinaram a deportação forçada e o encarceramento (no solo americano) em áreas específicas. A atual retórica de Trump conduz a um inevitável conflito social e econômico, sobretudo se considerarmos o peso econômico do trabalho efetivo realizado pelas populações que ele tem perseguido, principalmente pessoas advindas de países sul-americanos.  


O discurso de ódio também tem sido amplamente utilizado como ferramenta de guerra por parte de governos autoritários, como no caso da Rússia em sua campanha com relação aos seus interesses mais diretos na Ucrânia. No contexto da anexação da Crimeia, em 2014 e nos anos seguintes, uma forte campanha de desinformação conduzida por mídias estatal e redes sociais foram usadas pelo governo russo para justificar as ações junto à população ucraniana. E no contexto mais contemporâneo, marcado pela invasão da Ucrânia em 2022, o “discurso oficial” intensificou o uso político do discurso de ódio ao classificar os ucranianos como “nazistas” e “ameaças à segurança russa”, ação esta que conferiu certa legitimidade aos ataques e a contínua violação dos direitos humanos. 


O uso dessa estratégia fortaleceu a base interna do governo russo e ao mesmo tempo confundiu a percepção internacional com relação ao conflito em curso e sua evidente desproporcionalidade. 


Considerações 

Ao longo do artigo busquei fazer uma breve reflexão acerca das consequências mais diretas do discurso de ódio na política internacional nos últimos anos, destacando o seu uso político, considerando eventos políticos e sociais desde a crise de refugiados do mediterrâneo (203-2015), a crise dos refugiados ucranianos; as declarações do ex-presidente norte-americano Donald Trmup e a invasão à Casa Branca (2021) e, recente o crescimento de um discurso xenofóbico nos Estados Unidos e na Europa.


Como argumentei ao longo do texto, a disseminação de narrativas discriminatórias por meio de plataformas digitais e redes sociais serviu de instrumento para ações específicas de governos e grupos políticos que sequestraram até mesmo narrativas históricas e simbolismos com o intuito de garantirem seus interesses políticos mais diretos.


O grande desafio global reside em estabelecer parâmetros comuns que protejam a diversidade de opiniões sem permitir que o discurso de ódio se torne um instrumento de violência e exclusão. O combate ao discurso de ódio não deve se resumir à remoção de conteúdo das plataformas, mas também trazer formas de responsabilização por parte das pessoas que disseminam tal conteúdo e a própria plataforma por permitir o alcance internacional. Esse último ponto mesmo, por exemplo, esbarra justamente no interesse pessoal e econômico dos agentes que estão à frente de tais plataformas e a recente inserção de Elon Musk no governo de Donald Trump, ou mesmo as mudanças promovidas pela Meta na gestão de seu conteúdo já dizem muito sobre a complexidade do desafio de combater a desinformação, o discurso de ódio e a violência por eles gerada. 


Referências 

BENKLER, Y.; FARIS, R; ROBERTS, H. Network Propaganda: Manipulation, Disinformation, and Radicalization in American Politics. Oxford University Press, 2018.

EUROPEAN COMMISSION. The Digital Services Act: Ensuring a Safer and More Accountable Online Environment, 2022. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/policies/digital-services-act-package . Acesso em fev. 2025. 

HEINZE, Eric. Hate Speech and Democratic Citizenship. Oxford: Oxford University Press, 2016.

SUNSTEIN, Cass. #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton University Press, 2017.

SCHABAS, William. Genocide in International Law: The crime of crimes. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

TUFEKCI, Zeynep. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. New Haven:Yale University Press, 2018.

WALDRON, Jeremy. The Harm in Hate Speech. Harvard University Press, 2012.



Flavia Abud Luz
Flavia Abud Luz

Flávia Abud Luz - Mini biografia 

Professora de Relações Internacionais. Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Esp. em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP.  Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". Integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades; e Direito à Educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas (UNIAN/SP).

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