Encerramento de ciclos e crises institucionais na América Latina
A eleição de Hugo Chávez na Venezuela no ano de 1999 é considerada como o marco inicial da chamada Maré Rosa (Panizza, 2006), marcada pela ascensão de diversos governos progressistas na América Latina. Segundo o professor Fabrício Pereira da Silva, isso foi possível, pois as esquerdas latino-americanas aprenderam a participar de regimes formalmente democráticos e trouxeram uma esperança perante crises políticas, econômicas e sociais, mesmo em um momento quando ainda havia a percepção do pós-Guerra Fria de que o neoliberalismo seria a única opção eficiente. Hoje, o ciclo da Maré Rosa parece estar em declínio; sendo, contudo, difícil precisar qual foi o gatilho para seu processo de encerramento. Mesmo assim, alguns apontam o ano de 2012 como tal, devido ao impeachment do então presidente paraguaio Fernando Lugo.
Ao se estudar a história latino-americana, não é difícil perceber o quanto o encerramento de ciclos pode ser traumático para as instituições da região. Parte da literatura costuma apontar que a deficiência na representação política no subcontinente é uma das causas do fenômeno, juntamente com a fragilidade dos mecanismos locais de controle vertical, por meio dos quais cidadãos não são capazes de castigar ou compensar politicamente os seus representantes (Melo, 2010). Segundo essa lógica, a incapacidade do voto popular em eleger candidatos que desempenham o papel de verdadeiros intermediários do interesse dos eleitores gera poderes Legislativo e Executivo pouco representativos e uma população desconfiada do sistema político vigente. A representatividade ineficiente e a frustração da sociedade com o desemprenho dos condutores do Estado tornam-se terreno fértil para questionamentos quanto à pertinência da democracia, que, na América Latina, não conseguiu solucionar o problema da pobreza. Fazendo um esforço de aproximação entre teoria e empirismo, o contexto contemporâneo do subcontinente parece retratar mais uma das difíceis transições de paradigmas políticos; pois diversos de seus países, cada qual com as suas peculiaridades, enfrentam instabilidades políticas e sociais. Embora tais episódios tenham se tornado mais visíveis em 2019, são resultado de acontecimentos anteriores e parte do possível fim do ciclo da citada Maré Rosa.
A Venezuela é o exemplo regional mais emblemático de crise institucional; o que é largamente explorado pela imprensa internacional, principalmente pela existência de duas assembleias e dois presidentes. Nicolás Maduro é quem tem o controle de fato das instituições do país, tendo chegado à presidência no ano de 2013, com o discurso de dar continuidade à Revolução Bolivariana após a morte de Hugo Chávez, mas sem contar com a mesma legitimidade – a olhos civis e militares – do seu antecessor. As eleições de 2013 foram vencidas pelo herdeiro de Chávez por meros 50,6% dos votos, e a oposição, de saída, declarou não reconhecer o resultado. Para além das especulações acerca da idoneidade do pleito; a margem apertada de vitória já mostrava, naquele momento, o desgaste da proposta chavista, devido, dentre outras coisas, à queda no preço internacional do petróleo e à consequente falta de recursos para dar continuidade às robustas políticas sociais de outrora. A partir de então, a inflação subia a galope, e o presidente tentava contê-la por meio do congelamento de preços e da limitação ao consumo; porém o aumento inflacionário e as medidas governamentais desestimulavam a oferta e causavam desabastecimento, mesmo de produtos básicos. Assim, a oposição ganhou espaço para aumentar o tom crítico, ao mesmo tempo em que o governo perdia parcela significativa da sua base de apoio. Para se manter no cargo em um clima de carestia e instabilidade política, Maduro recorreu às Forças Armadas e aparelhou o Estado com militares pouco preparados para ocupar os cargos que lhes foram designados; tanto nos ministérios, quanto na estatal petroleira PDVSA. Em consequência, o Estado venezuelano tornou-se completamente ineficiente em prestar à população do país, e a estatal perdeu a sua capacidade de reinvestir na exploração do petróleo, fazendo a sua produção despencar. Para completar, em dezembro de 2015, a oposição, reunida em torno da alcunha “Mesa de Unidade Democrática”, conquistou a maioria da Assembleia Nacional nas eleições parlamentares, ao que Maduro reagiu convocando uma Assembleia Constituinte. Esta, em 2017, passou a funcionar como uma espécie de parlamento paralelo.
A crise institucional venezuelana foi, ainda, intensificada, após as eleições presidências de janeiro de 2019, pois elas resultaram em nova vitória de Maduro, mas são objeto de acusações da oposição, que as considerara fraudulentas pelo impedimento de alguns de seus líderes participarem do pleito. Diante do fato, a Assembleia Nacional, majoritariamente composta por membros da Mesa de Unidade Democrática, declarou que a Presidência da República estaria vaga e nomeou o seu presidente, Juán Guaidó, como presidente encarregado da Venezuela. A sociedade de Estados retrata a polarização venezuelana, com atores regionais e globais importantes que se alternam em reconhecer Maduro ou Guaidó como presidente legítimo do país; ainda que o controle das instituições do Estado estejam nas mãos do primeiro. Cabe ressaltar que eleições parlamentares estão agendadas para dezembro de 2020 e que Nicolás Maduro, com o discurso de manter a higidez do pleito, concedeu indulto a mais de cem presos político de oposição ao regime. Ainda assim, parte da oposição liderada por Guaidó recusa-se a participar das eleições em dezembro, e a União Europeia, convidada a participar como observadora independente do processo eleitoral, recomendou o seu adiamento como forma de garantir que ele seja, de fato, livre.
A Bolívia também viu as suas instituições entrarem em crise no ano de 2019, como resultado de um processo iniciado já em 2016, quando o então presidente Evo Morales sofreu a sua primeira grande derrota nas urnas desde que havia assumido o cargo. Ele chegou à Presidência da República do país em 2006, com fortes apelos nacionalistas e identitários. Por ter promulgado uma nova constituição, o líder pôde ser reeleito nos anos de 2009 e 2014, apoiando-se em bons resultados macroeconômicos, crescimento do PIB e diminuição da desigualdade social. Ocorre que, em 2016, Morales propôs um referendo para consultar a população acerca da possibilidade de concorrer a mais um mandato presidencial; o que foi rejeitado por pequena margem de diferença. Ainda assim, a corte constitucional do país decidiu, em novembro de 2017, que a limitação às reeleições seria uma violação aos Direitos Humanos, permitindo que o então presidente fosse candidato em 2019.
Nas eleições de outubro de 2019, no momento em que mais de 80% das urnas já estavam apuradas e indicavam que haveria um segundo turno entre Evo Morales e o oposicionista e ex-presidente Carlos Mesa, o tribunal eleitoral boliviano suspendeu a contagem dos votos, retomando-a no dia seguinte e indicando a quarta reeleição de Morales em primeiro turno. A oposição, por suspeitar do movimento narrado, imediatamente tomou as ruas, principalmente em Santa Cruz de la Sierra, onde se encontrava o principal reduto empresarial e religioso contrário ao governo. Em resposta, apoiadores do então presidente também começaram a se manifestar, e a polarização social evoluiu para deixar o país sitiado. Diante da gravidade da situação, a Organização dos Estados Americanos manifestou-se em relatório, recomendando que as eleições fossem anuladas e que um novo pleito fosse convocado. Morales chegou a afirmar que aceitaria as recomendações da OEA; porém o tom de parte dos opositores já havia subido para ganhar contornos racistas e fundamentalistas, e suas demandas, passado da simples recontagem dos votos à saída do presidente antes do término de seu mandato. A oposição contaminou setores ligados à segurança pública e às forças armadas, até que a cúpula militar boliviana foi a público e pediu a renúncia imediata de Morales. Em nome da segurança da população, o presidente deixa o cargo, seguido do vice-presidente e do presidente do Senado Federal. Diante do vácuo na Presidência da República e na sucessão ao cargo, a segunda presidente do Senado Federal, Jeanine Añez autoproclamou-se presidente e foi confirmada em sessão legislativa da qual os membros do Movimento ao Socialismo (partido de Morales) foram impedidos de participar. Cabe ressaltar que, ainda hoje, a higidez do pleito eleitoral de 2019 é objeto de controvérsias, já que a OEA mantém o seu posicionamento de que era necessário suspendê-lo, ao passo que, em 2020, foram divulgados pelos jornais The Washington Post e The New York Times estudos que não reconheciam quaisquer dados estatísticos capazes de atestar fraude no pleito. Após serem adiadas devido à pandemia do coronavírus, novas eleições presidenciais aconteceram 18 de outubro de 2020, e resultaram na vitória do ex-ministro das finanças de Morales, Luis Arce, em primeiro turno. A presidente em exercício, Jeanine Añez, reconheceu o citado resultado poucas horas após ele ter sido anunciado, porém a transição de poder ainda é objeto de atenção, em um país que não assiste a uma troca pacífica de governo desde 2002.
Mesmo o Chile, que é tradicionalmente visto com admiração por olhos regionais e extrarregionais por representar um bastião de estabilidade na América do Sul, passa por fortes abalos institucionais. Desde o fim da ditadura Pinochet, o país conservava aparente estabilidade política e social e bom diálogo com o Norte; além de uma economia fortemente neoliberal. O neoliberalismo é garantido pela atual constituição chilena, que ainda é a mesma da época da ditadura militar e fez com que os diferentes governos, ao longo do tempo, tivessem pouca margem para empregar políticas sociais. Assim, os serviços públicos chilenos são, mesmo quando controlados pelo Estado, pagos; o seu sistema previdenciário é privatizado; e a polícia é muito militarizada, de modo a criar insegurança à população mais vulnerável. Pois bem, Michelle Bachelet e Sebastián Piñera, enquanto representantes respectivamente da centro-direita e da centro-esquerda, alternam-se na Presidência da República desde 2006 e mantiveram um quadro de políticas públicas com relativa semelhança, ajudando a conservar a citada imagem de estabilidade chilena. Ocorre que, em 2019, o país foi palco das maiores manifestações populares desde a época da ditadura Pinochet, tendo sido desencadeadas por um aumento nas tarifas do transporte público. Elas podem ser entendidas como um conjunto de demandas sociais negligenciadas há décadas e como resultado de uma percepção geral de empobrecimento e encarecimento de serviços essenciais. Inicialmente, o governo colocou as forças armadas na rua para controlar as manifestações, o que trouxe ao imaginário popular a memória da ditadura e desgastou a imagem do país. Mesmo com o recuo do presidente Piñera, que trocou o comando das Forças Armadas, as demandas sociais cresceram a ponto de ser necessário convocar um plebiscito para a adoção de uma nova constituição. O pleito aconteceu no dia 25 de outubro de 2020, quando a população votou, em larga maioria, para a elaboração de uma nova Carta Magna a ser redigida por assembleia constituinte formada exclusivamente para esse fim. Cabe ressaltar que parte dos opositores à reforma constitucional adotaram, em campanha, discurso religioso e cristão, alegando não ser de esquerda ou de direita; enquanto os favoráveis a ela recorrem às imagens dos protestos do ano passado. De toda forma, os resultados de mais de 78% dos votos válidos favoráveis à reforma constitucional e de 79% para a formação de uma assembleia constituinte a ser eleita exclusivamente para esse fim mostram a vontade popular de mudança e a insatisfação com a classe política tradicional.
Muito embora a América Latina veja, hoje, crises institucionais em diversos de seus países, a relativa tranquilidade com que ocorreu o pleito presidencial boliviano e a aprovação da reforma constitucional em referendo popular no Chile trazem, sem dúvida, esperança para as instituições democráticas da região. Ainda que haja particularidades importantes em cada país, o subcontinente parece enfrentar desgaste de figuras políticas tradicionais, a descrença nos representantes eleitos e nas instituições e a dificuldade em renovar lideranças. Questionamento a governos e encerramento de ciclos são salutares à democracia, porém eles tornam-se perigosos quando passam a colocar em xeque o próprio regime democrático e o Estado de Direito. O perigo é ainda mais concreto, ao se fazer ascender lideranças que flertam com o autoritarismo e dizem-se alheias ao sistema político vigente. Talvez a Bolívia e o Chile tragam o sopor de renovação necessário e uma conscientização geral da importância da democracia.

Vitor Furtado de Melo, natural de Cascavel, porém criado em Varginha (MG), é bacharel em direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro com pós-graduação em Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional. Entusiasta do estudo da área das Relações Internacionais e da Análise de Política Externa. Direito Internacional Público, Direitos Humanos e atuação das cortes regionais de Direitos Humanos são suas áreas de maior interesse; especialmente sob uma abordagem crítica e pós-colonial. Possuí grande interesse em estudar o reconhecimento de novas dimensões dos Direitos Humanos e novas expressões dos Direitos Difusos e Coletivos. Em suas horas livres, tenta consumir produções artísticas de diversas culturas, em forma de livros, filmes e séries e tentando dar certa preferência a conteúdos latino-americanos. Gosta também de cozinhar e cuidar das suas plantas; sempre escutando samba e MPB.
Fonte:
PANIZZA, Francisco. La marea rosa. Análise de Conjuntura OPSA, 8. Rio de Janeiro: OPSA, 2006.
SHAFIR, Isabel Piper. Memorias de la Violencia Política en Chile: 1970-2014. In: Anos 90, Porto Alegre, v. 22, nº 42, dez/2015, p.183, tradução nossa. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/52958/36146;
SILVA, Fabrício Pereira da. O fim da onda rosa e o neogolpismo na América Latina. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 4, n. 2, 165-178. Pelotas: UFPel, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rsulacp/article/view/14207/9147 . Acessado em 20 de setembro de 2020;
MELO, Marcus André. Equilíbrios e desequilíbrios de poderes na América Latina. In: FAUSTO, Sérgio (org.). Difícil democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2010;
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/06/senado-condena-lugo-em-processo-politico-no-paraguai.html
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151210_venezuela_desafios_tg
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/10/17/economia/1413502704_182767.html
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/04/130414_venezuela_resultado_pu_dt
https://www.dw.com/pt-br/chile-p%C3%B5e-ex%C3%A9rcito-nas-ruas-para-conter-caos/a-50906058
https://www.pagina12.com.ar/294766-arranco-la-franja-televisiva-del-plebiscito-contituyente-en-
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