Fim do Ecumenismo Involuntário? A Política Externa do Brasil pós-Impeachment
Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama[1]
A última viagem oficial de Mauro Vieira em sua gestão como ministro das Relações Exteriores foi ao Peru, em fins de Abril de 2016. No país vizinho do Brasil e membro da Aliança Trans-Pacífica, Vieira estabeleceu diversos acordos de comércio e investimento[2].
Tais acordos deram a tônica da política externa do segundo governo Dilma Rousseff (PT). Nos últimos 17 meses, o Brasil estabeleceu acordos de comércio e investimento com Estados Unidos[3], Alemanha[4], Reino Unido, Colômbia e México.
Após a abertura do processo de impeachment da Presidenta Rousseff, o vice Michel Temer (PMDB) assumiu interinamente a Presidência da República em 12 de Maio de 2016 e escolheu José Serra (PSDB) como seu ministro das Relações Exteriores. A experiência internacional do novo chanceler é oriunda de suas passagens pelos ministérios da Saúde e Planejamento.
Considerado o programa do governo interino, o documento “Uma Ponte para o Futuro”[5] menciona todos os países supracitados como parceiros prioritários para as relações internacionais do Brasil.
Em vista dessas parcerias, não podemos dizer que há abrupta descontinuidade na política externa entre 2015 e 2016. Há continuidades. O contraste mais agudo é com o governo Lula (2003-2010).
O segundo mandato Rousseff foi marcado pelas contradições das políticas adotadas após a crise de 2008[6]. As inovações do governo Lula (combate à fome, políticas públicas de transferência de renda para largos setores excluídos da economia formal) foram adotadas por muitos países no Sul global, o que contribuiu para nivelar diferenças no plano internacional. O fim do ciclo das commodities e a desaceleração econômicas dos emergentes reduziram as escolhas no plano externo, ao passo que o arrefecimento do consumo doméstico e o endividamento crescente puseram fim ao surgimento de “novas” classes médias. Tentativas de liderança normativa internacional (combate à cyber-espionagem[7], cooperação Sul-Sul) esbarraram nesses limites. Iniciativas de longo prazo (como a liderança da operação de paz da ONU no Haiti, a MINUSTAH) ficaram aquém de seus objetivos[8].
O governo Rousseff teve perfil pragmático nas relações exteriores. Já em 2015, se afastou de aliados como a Venezuela e reabriu negociações com seu ex-desafeto Barack Obama (criando desconforto com os BRICS[9]). Esse passado recente deu o fôlego inicial para “Uma Ponte para o Futuro”.
As diretrizes de política externa anunciadas pelo novo chanceler Serra[10] retomam propostas feitas pelas candidaturas de oposição a Rousseff na eleição de 2014 – da “ideologização” da política externa e a necessidade de pôr fim à política externa “partidária”[11] a críticas ao multilateralismo no sistema de comércio da OMC e nos acordos ambientais[12]. Em contraponto à participação num grupo de países emergentes – os BRICS – e a investimentos diplomáticos na África, Serra e o presidente interino Temer enfatizam parcerias tradicionais na Europa Ocidental, América do Norte (e Japão).
Esse conjunto de mudanças na política externa foi associado ao processo de impeachment de 1992, quando Itamar Franco (PRN) se tornou presidente da República e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), seu chanceler. Analogias entre os contextos dos impeachments são, porém, bem limitadas.
No impeachment de 1992, o Brasil vivia uma dura recessão. No ano seguinte, o país teve inflação recorde de 4 dígitos. Renegociar a dívida externa do Brasil (a maior do planeta) era a tarefa mais urgente do chanceler Cardoso. Com um baixo nível de reservas em moeda forte, a combalida economia brasileira apostava em inovações institucionais para alavancar o comércio exterior. O sonho da integração regional avançou no Tratado de Assunção (1991) – ainda no governo Fernando Collor – e foi aprofundado com Itamar no Protocolo de Ouro Preto (1994), concretizando o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)[13]. No plano multilateral, a rodada Uruguai do GATT estava próxima do fim, ao qual se seguiu a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) – que o MERCOSUL passou a integrar, como bloco regional de comércio.
Em 2016, a OMC é dirigida por um brasileiro[14] e se encontra paralisada por prolongado impasse entre países desenvolvidos e emergentes nas agendas agrícola e de serviços. O surgimento de acordos megalaterais (como a Parceria Trans-Pacífica e a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento) desafia a centralidade da OMC e acena com a intensificação flexível das cadeias produtivas globais[15] (em detrimento de normas que promovem igualdade de condições para desenvolvidos e emergentes). A consolidação da OMC a tornou indispensável para o comércio global, mas também menos desejável para algumas das principais economias do planeta.
O MERCOSUL realizou parcialmente o sonho da integração regional, ao custo de aumento da interdependência assimétrica entre seus membros[16]. Brasil e Argentina experimentaram altos e baixos desde 1991 e rupturas não figuram como opções para seus governos. A consolidação do MERCOSUL como bloco econômico impactou os fluxos de comércio e investimento na América do Sul. O bloco se tornou o principal interlocutor da União Europeia, com quem negocia há anos um tratado de livre comércio (cujas tratativas avançaram, semanas atrás, com a entrega de ofertas de acesso a mercados[17]). A institucionalização do bloco foi acompanhada pela ampliação de suas funções. Desde o Protocolo de Ushuaia II (2011), o MERCOSUL possui uma cláusula que permite suspender seus membros caso haja interrupção do estado democrático de direito. A cláusula foi invocada em 2012, após o impeachment-relâmpago de Fernando Lugo no Paraguai. A suspensão do Paraguai viabilizou a entrada de um sócio problemático – a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro[18], atualmente imersa numa crise de proporções desconhecidas.
Em 25 anos o MERCOSUL se tornou maior, mais relevante para os assuntos regionais, porém menos coeso. Seus membros são mais sensíveis aos inconvenientes da proximidade. O bloco não firmou posição sobre as crises no Brasil e na Venezuela. A Argentina de Maurício Macri foi a primeira a reconhecer Michel Temer[19]. Maduro mandou chamar seu embaixador em Brasília para consultas[20].
A acelerada desindustrialização da economia brasileira desde 2008 aumentou o peso do agronegócio nas relações exteriores. Nesse contexto, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário pelo governo interino não é surpreendente. Tampouco surpreende a adesão da CNI e FIESP ao projeto do governo do PMDB de reinserir o Brasil em cadeias globais de produção industrial – em detrimento de emergentes como os BRICS e colocando grandes entraves à integração regional.
As condições dessa reinserção não estão claras. A dependência em relação a investimentos chineses não parece sujeita a reviravoltas. Desidratar o MERCOSUL com negociações com a EU em curso tampouco faz sentido: asfixiaria uma possibilidade de retomada de fôlego do comércio exterior.
A complexidade das relações internacionais do Brasil em 2016 dificulta nostalgias. A contradição do século XXI não pode tirar suas soluções de antiquários. Se o futuro é incerto, criatividade é preciso.
Após o impeachment veio uma ressaca de inovações. O governo interino não quer correr riscos.
No futuro próximo, a política externa apostará em menor número de parcerias (no Atlântico Norte e Ásia), alegadamente mais produtivas e de mais fácil manejo pela burocracia especializada do estado brasileiro. Estabilidade e controle são prioridades: parcerias seguras, via negociações lentas, auferindo benefícios graduais. O Itamaraty será menos permeável a demandas da sociedade civil – em paralelo com a crise política da Nova República[21], que guindou Temer interinamente ao Planalto.
Cautela e seletividade na escolha dos parceiros limitam a autonomia de voo do novo chanceler. A aversão a riscos e a linha de animosidade traçada pelas declarações dos governos “bolivarianos”[22] e UNASUL[23] limitam o apelo do Brasil como liderança regional (ainda que a ruptura de relações não seja uma opção para El Salvador[24] e Venezuela[25], em face dos intensos laços econômicos e de cooperação com o Brasil). Avalizadas por Temer[26], tais decisões reafirmam a subordinação da política externa a objetivos domésticos expressos em “Uma Ponte para o Futuro”.
A mudança na política externa ocorre sob o signo do pragmatismo. As circunstâncias levaram Mauro Vieira a abrir mão de grandes narrativas de transformação. Isso viabilizou negociações simultâneas com emergentes e desenvolvidos. Em tempos turbulentos, sua gestão deixou um legado positivo. O Brasil continuará a buscar acordos de comércio e investimentos – como em 2015. Já o afastamento relativo de antigos aliados trouxe desafios para o ecumenismo involuntário do governo Rousseff – agora herdados pelo governo interino.
Um novo contexto impede analogias com a década de 1990. As contradições da política externa brasileira olham para o futuro. Fiado em fórmulas nostálgicas, o downsizing pode se provar inútil.

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
DOUTOR EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELO IRI/PUC-RIO (2011).
MESTRE EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELO IRI/PUC-RIO (2005).
BACHAREL EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS PELA PUC-MINAS (2002).
Referências
[1] Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e pesquisador do BRICS Policy Center
[2] http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/04/brasil-e-peru-assinam-acordos-para-ampliar-compras-servicos-e-investimentos
[3] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). De Volta para o Futuro: O Brasil de Dilma Rousseff entre a Rússia e os Estados Unidos. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/251817. Acesso em: 13 de Julho de 2015.
[4] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). Celebração Inacabada: Nos 70 anos da ONU, Brasil e Alemanha propõem reformas. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/253844. Acesso em: 24 de Agosto de 2015.
[5] http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf
[6] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2014). Conquistas e Desafios da Política Externa de Dilma Rousseff. Carta Maior. Disponível em: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Conquistas-e-Desafios-da-Politica-Externa-de-Dilma-Rousseff/4/32244 . Acesso em: 16 de Novembro de 2014.
[7] Abdenur, Adriana Erthal & Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). “Triggering the Norms Cascade: Brazil’s Initiatives for Curbing Electronic Espionage”, Global Governance, vol.21, no.3 (July-Sept.2015), pp.455-474
[8] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/01/1734304-haiti-pede-a-oea-missao-para-mediar-impasse-eleitoral-com-oposicao.shtml
[9] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva. (2015). De Volta para o Futuro: O Brasil de Dilma Rousseff entre a Rússia e os Estados Unidos.
[10] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/14038-discurso-do-ministro-jose-serra-por-ocasiao-da-cerimonia-de-transmissao-do-cargo-de-ministro-de-estado-das-relacoes-exteriores-brasilia-18-de-maio-de-2016
[11] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1535532-entrevista-com-rubens-barbosa.shtml
[12] http://marinasilva.org.br/programa/
[13] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). O Plano B que Satisfaz: a Entrada da Bolívia no MERCOSUL. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/252493. Acesso em: 28 de Julho de 2015.
[14] http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/09/brasileiro-roberto-azevedo-assume-direcao-geral-da-omc.html
[15] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). A parceria Trans-Pacífica e os Desafios da Economia Global em Recuperação. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/256015. Acesso em: 14 de Outubro de 2015.
[16] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Diálogos Indiretos: Brasil e Argentina redefinem uma relação em crise. NEMRI. Disponível em: https://ceresri.wordpress.com/2016/02/19/dialogos-indiretos-brasil-e-argentina-redefinem-uma-relacao-em-crise/ . Acesso em: 19 de Fevereiro de 2016.
[17] http://en.mercopress.com/2016/05/12/eu-and-mercosur-exchanged-market-access-offers-beef-and-ethanol-excluded-as-sensitive-products
[18] http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/06/mercosul-suspende-paraguai-e-anuncia-adesao-da-venezuela.html
[19] http://www.clarin.com/mundo/Argentina-reconoce-Temer-seguira-dialogando_0_1575442653.html
[20] http://www.telesurtv.net/news/Venezuela-llama-a-consulta-a-su-embajador-en-Brasil-20160514-0010.html
[21] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Sob Judice: A Nova República em Transição. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/262141. Acesso em: 17 de Abril de 2016.
[22] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/14023-manifestacoes-sobre-a-situacao-interna-no-brasil
[23] http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/14024-declaracoes-do-secretario-geral-da-unasul-sobre-a-situacao-interna-no-brasil
[24] http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/05/el-salvador-descarta-romper-relacoes-com-o-brasil-5803443.html
[25] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/05/1771410-venezuela-comunica-a-brasil-que-nao-congelou-relacoes-diplomaticas.shtml
[26] http://m.politica.estadao.com.br/noticias/geral,temer-deu-aval-a-repudio-a-paises-bolivarianos,10000051275
Imagem: O Ministro de Relações Exteriores, José Serra, em discurso sobre as diretrizes da política externa. Fonte: Portal Brasil. Crédito: Ascom/Itamaraty.
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