Identidade nacional e o conflito da Ucrânia
Falar sobre a Rússia é sempre um tema complexo, já que é difícil dissociar a realidade da visão que possuímos do país e que foi construída desde a Guerra Fria. Certo é que a Rússia atual nada tem a ver com a URSS e o comunismo, usado frequentemente como um referencial do maior país do planeta e uma forma de interpretar as ações da mesma no cenário global... Ao final fomos criados com uma imagem de uma Rússia bélica e “comunista”, sempre sendo a vilã da história e a antagonista do desenvolvimento global, maquinando contra o ocidente...
Em nenhum momento anseio defender os ataques a Kiev e justificar o sofrimento da população civil, porém cabe a todo internacionalista interpretar além das informações que permeiam a mídia, principalmente quando esta é dominada por nações do ocidente e em sua grande maioria conta com capital americano ou de algum aliado da OTAN.
Porém não podemos ignorar aos preceitos de John Mackinder quando falava da importância geoestratégica e geopolítica da área designada como Heartland e nem mesmo a Clausewitz e o Dilema da Segurança de John Herz.
Assim mesmo é de vital importância conhecer os elementos que compõe a identidade nacional (Habermas 2013) quando sentimentos nacionalistas estão em jogo e fazem parte da mesa de negociações.
Em minha experiência pessoal, vivi em primeira pessoa a tentativa de separação da Catalunha da Espanha em 2017, e ví como o direito e a sociedade internacional se decanta mais pelo poder e a intervenção, que pelo desejo da população local ou pelas articulações políticas locais... sendo essa de fato minha área de especialização académica, as dimensões da identidade nacional, além da minha atuação em paradiplomacia e smartcities.
Na questão da Ucrânia, que de fato pode se alastrar por todo o leste europeu, o fator identitário é fundamental para entender o conflito desde uma base social, sendo esta amplamente negligenciada perante os fatores econômicos e geopolíticos, pois cabe lembrar que grande parte das nações que compõe a fronteira entre a Europa ocidental e Europa do leste são “nações jovens” cuja independência é recente e que possui elementos identitários reforçados na Guerra Fria e pelo nacionalismo soviético replicado nas nações pro URSS.
O avanço da União Europeia e principalmente o avanço da OTAN como salvaguardas da defesa das nações do ocidente europeu pós-guerra Fria, foi para a Rússia uma afronta a sua seguridade nacional, ao final 1 576 km compõe a fronteira com a Ucrânia e a instalação de uma base militar no país resultaria em uma ameaça de 2 minutos a ponta de míssil à capital russa e demais cidades importantes para a economia do país, afetando ou ameaçando ao centro de gravidade russo (Clausewitz. 1832) o que sem dúvidas pesou no posicionamento de Putin.
Nesse tabuleiro de xadrez a Ucrânia é apenas um peão para os interesses geopolíticos, porém o risco de gerar um atrito a grande escala foi negligenciado deliberadamente pelas grandes potências e pela ingente necessidade da expansão financeira global.
É óbvio que a Rússia patrocina movimentos separatistas na Ucrânia com o objetivo de ampliar sua área de interesse e até mesmo gerar estados tampão entre o avanço do ocidente e seu território. Já que mesmo participando do sistema financeiro internacional o país sempre manteve uma postura diferenciada e muitas vezes separada do resto de países, muitas vezes alinhada a China e nações euro-asiáticas.
E a ONU tão questionada pela população, não tem poder hegemónico ou coercitivo algum para impedir o conflito, já que o conselho de segurança deu a Rússia o poder de veto, e da mesma forma que aos EUA o utilizou quando discutida a invasão do Iraque a Rússia fez o mesmo na última reunião do conselho de segurança... Sendo essa uma das bases constituintes do conselho e que ficou patente que não irá mudar.
O conflito para Moscou já não é algo periférico, mas localizado no quintal de sua casa... e a União Europeia entrou no jogo motivada pela necessidade constante de expansão... Uma amalgama de interesses políticos e econômicos que de fato podem gerar um sucesso em cadeia de grandes repercussões...
Porém nessa história nem tudo é branco ou preto.... e o povo de fato é o que mais sofre é o mais ignorado, principalmente o povo da Ucrânia, dividido entre ambos os lados do jogo...
Por outro lado, os EUA e a OTAN tem sido uma constante provocação ao governo russo, não sendo este um simples país periférico mas uma potência bélica assim como os EUA e o remanejamento de tropas da OTAN em uma grande aliança em direção a Ucrânia podem agravar mais ainda a situação. EUA quer fazer uma guerra periférica em plena área de alcance balístico do seu maior rival... no mínimo algo complexo... e que na luz de Maquiavel, Weber, Clausewitz e Kissinger justificam a postura de Moscou.
Sabendo que o que está em jogo é algo muito mais além da estabilidade da Ucrânia, mas o equilíbrio de forças no panorama internacional, nações como o Brasil foram até a Rússia em um momento obscuro e de difícil interpretação das repercussões, mas unidos por um crescente nacionalismo, frequente no discurso russo e que por sua vez excluí partes de sua população como ocorre em diversas nações do planeta. De modo que tal qual prega o construtivismo, vemos ações e discursos que ora são divergentes ora convergentes de nações tradicionalmente localizadas a um lado u outro do mundo bipolar.
A deterrência é a palavra-chave da situação pois uma nação ameaçada será mais beligerante e uma nação dividida mais fraca e manipulável... E assim como em muitos conflitos entre potencias ao longo da história, talvez a solução passe pela cisão territorial, embora o atrito deva continuar. Porém nessa altura do campeonato, uma solução pacífica está mais longe de uma realidade empírica que a possibilidade de um conflito maior.
Nessa conjuntura a situação de Donetsk e Luhansk é prioritária, assim como sua composição identitária é fundamental, ao final mais de 8 milhões de “russos” vivem no território ucraniano, e ambos os territórios possuem importante base de apoio a Rússia, assim como a Crimeia durante o começo das tensões... sem embargo sua voz foi silenciada pelos bombardeios de Kiev, e um acordo de paz agora seria somente ocultar um problema muito maior... O atrito de dois mundos tais como Huntington previu... e que pelo visto não cessará tão cedo... Mesmo com o recuo russo ou com uma recapitulação de Kiev, podemos estar a um passo de um grande conflito ou no gérmen do mesmo.
Bibliografia:
Habermas, Jürgen. Teoria e Práxis. Editora Unesp. 1ª Edição. São Paulo 2013.
Habermas, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa. Editora Unesp. 1ª Edição.
São Paulo 2013. 185p.
Hobsbawm, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780 - Programa, Mito e
Realidade. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro 1991. 219p.
Morgenthau, Hans. A Política entre as nações, a luta pelo poder e pela paz.
Editora Universidade de Brasilia e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São
Paulo 2003.
Clássicos do IPRI 1093p
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Martins Fontes, 1996. 930p
CHURCHILL, Winston S. The Second World War. Volume IV: The Hinge of Fate.
London: Cassell, 1951

Wesley Sá Teles Guerra, Coordenador de pesquisa da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro e Doutorando em Sociologia e mudanças da Sociedade Contemporânea, Mestre em Planejamento e Gestão de Cidadades Inteligentes pela Universitat Carlemany (Andorra), Mestre em Políticas Sociais e Intervenção Comunitária (Universidad de Coruña), Especialista em Migrações (UDC), Especialista em Ciências Políticas e Relações Internacionais (FESPSP - Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), MBA em Global Management (Massachussetts Business Institute), MBA em Parcerías Globais (ILADEC - Instituto Latinoamericano para o Desenvolvimento da Economia e Ciência), Bacharel em Administração de Empresas (UCB - Universidade Católica de Brasília). Especialista em Gestão de Projetos para o Desenvolvimento pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. Membro do Smartcities Council, ECPR European Consortium for political research, Aliança Eurolatina de Cooperação entre Cidades e IAPSS International Association for Political Sciences Students , Atualmente é pesquisador e presidente do CERES além de coordenador do OGALUS – Observatório Galego da Lusofonia e autor dos livros: Cadernos de Paradiplomacia e Paradiplomacy Reviews.