Mercosul: Brasil, Venezuela, Paraguai e o discurso da Cláusula Democrática
Com a onda de redemocratização nos países do Cone Sul nos anos de 1980-90, tentou-se por em prática uma série de acordos que tinham como objetivo a união regional, algo aos moldes da União Europeia. O projeto mais ambicioso foi o da criação do bloco do Mercado Comum do Sul (Mercosul), uma tentativa de unificar os mercados e taxas alfandegarias além de promover o livre fluxo de pessoas e mercadorias entre os países membros.
O Mercosul teve sua origem embrionária no acordo neoestruturalista e integracionista de 1985 entre os presidentes do Brasil, José Sarney e da Argentina, Raul Alfonsín. Sua origem de fato se dá com o Tratado de Assunção, de 1991, assinado pelos países membros Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. Em 1995 entrava em vigor a Tarifa Externa Comum, criando o segundo mercado comum do mundo. O Bloco passou a operar com uma fórmula quatro mais um (CERVO, 2012), fazendo acordos multilaterais onde os quatro membros agiam em uníssono em relação ao quinto parceiro externo. Esse foi o caso em acordos com os Estados Unidos, União Europeia e Comunidade Andina.
Apesar de seu objetivo integracionista, o Mercosul encontrou graves problemas, de ordem de política interna de seus membros, tornando sua evolução no mínimo atravancada. A crise de insolvência da Argentina em 2001, por exemplo, serviu para agravar a desvalorização do Real em 1999. Com isso, recuava-se a implantação das políticas de mercado comum, visto que as medidas adotadas pelos respectivos países para solucionar suas crises internas comprometiam a própria zona de livre comércio. Mesmo com tais percalços, o Bloco aceitou a adesão do Chile e Bolívia como membros associados e recolheu o pedido de adesão da Venezuela.
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Da aprovação do protocolo de adesão da Venezuela à aceitação pelo Congresso Nacional brasileiro do país como membro associado houve uma série de discussões e debates acerca das vantagens e desvantagens que tal união traria.
Os tramites internos para a aceitação da Venezuela como membro foram bastante conturbados e mais se refletiam como uma disputa partidária ideológica interna do que como uma questão puramente de Política Internacional – se é que tal tipo ideal sequer existe, mas esse viés conceitual terá que ficar para outro estudo.
A adesão do país governado por Hugo Chávez, após a aceitação do chefe do executivo (Luís Inácio), deveria passar por uma votação no Congresso, devendo ser aprovada em votações nas duas Casas. Os partidos de oposição ao governo, liderados por PSDB e DEM, esforçaram-se no intuito de barrar a aprovação do termo de adesão, após críticas do presidente venezuelano a condução do tema pelo Congresso.
Em meio as críticas sobre o caráter não democrático do governo venezuelano, o presidente Chávez defendia a criação de um Mercosul menos comprometido com valores econômicos e direitistas e mais comprometido com ações políticas que buscassem a integração mais igualitária entre os países do Bloco, preocupado com os interesses sociais sul-americanos. Afirmou ainda que, se não houvesse vontade de mudança, não interessava a Venezuela fazer parte do Bloco.
Com esse cenário desfavorável, a votação foi novamente postergada por parte do Congresso. Mesmo sem votos suficientes para barrar a entrada do país no Bloco, a oposição mostrou-se determinada a obstruí-la indefinidamente. O presidente Chávez teria dado um prazo de três meses a partir de julho de 2007, segundo ele, com o objetivo de planejar suas políticas públicas. Afirmou ainda que o interesse na participação no Mercosul continuava vigente.
Em 2008, com uma situação mais branda, a Câmara dos Deputados aprovou o decreto autorizando a entrada da Venezuela no Bloco. No entanto, em 2009 com a ratificação da reeleição ilimitada para o cargo de presidente no país, as relações voltaram a se estremecer. Os congressistas contrários à adesão da Venezuela acusavam o governo de ir contra a cláusula democrática do Mercosul. Pôs-se uma disputa entre os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), pautado por relatórios da OAE (Organização dos Estados Americanos), defendendo o caráter antidemocrático e o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que com o apoio da base aliada, elaborou um relatório argumentando que, apesar da possibilidade de reeleição, o governo de Chávez seria transitório.
Em outubro do mesmo ano a Comissão das Relações Exteriores do Senado aprovou, por 12 votos a 5 a entrada da Venezuela no Mercosul. Já para a votação no plenário, projeto foi adiado por diversas vezes, fosse pelo baixo número de parlamentares presentes fosse pelas discordâncias da oposição. A postura beligerante do presidente Chávez, especialmente em relação a decisão do governo da Colômbia em permitir a presença do exército Norte-americano em seu território, pouco contribuía para a solução dos conflitos ideológicos e políticos no Senado brasileiro.
Finalmente, em dezembro, por 35 votos a 27, o plenário aprovou a entrada da Venezuela no Mercosul. Com a aprovação do Brasil, Argentina e Uruguai, restava agora o Congresso do Paraguai aceitar a adesão.
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No Paraguai, a eleição de Fernando Lugo, em 2008, encerrou um governo de 61 anos do Partido Colorado. No entanto, apesar da vitória no executivo os colorados continuaram com a maioria no Congresso.
Em maio de 2012, manifestantes sem-terra ocuparam uma propriedade na região de Curuguaty, propriedade essa que pertenceria a um ex-senador colorado. Os manifestantes alegavam ainda que a propriedade fora tomada ilegalmente durante a ditadura militar pelo referido partido. Em junho, uma operação policial para a remoção dos sem-terra vitimou 6 policiais e 11 manifestantes. Com o episódio e a confirmação de que a propriedade não pertencia de fato ao político colorado, Lugo aceitou as demissões do ministro do interior Carlos Filizzola e do Chefe Nacional da Polícia Paulino Rojas. O presidente anunciou ainda que contaria com o apoio da OEA numa comissão especial para apurar o caso.
No mesmo mês, o deputado Luis Gneiting, colorado, apresentou proposta de julgamento político, responsabilizando Lugo pelos acontecimentos de Curuguaty. O presidente confirmou que se submeteria ao julgamento, mas não apresentaria sua renúncia antecipadamente. No dia 22, constituído um tribunal de julgamento, o Senado declarou Lugo culpado. O presidente informou que se submeteria à decisão.
Partidários de Lugo se manifestaram a favor do presidente, provocando tumulto com a polícia na Praça das Armas. A TV Pública do Paraguai, estatal, foi tomada por agentes da polícia e proibida de transmitir imagens da manifestação. Tal fato foi denunciado pelo destituído diretor da rede, Marcelo Martinessi. Mobilizações favoráveis a Lugo angariavam representantes de partidos e movimentos de esquerda, camponeses, indígenas, centrais sindicais e trabalhadores rurais, os quais não reconheciam o governo de Federico Franco.
Governos da América do Sul classificaram a destituição do presidente como golpe de Estado, questionando a não observância de instrumentos processuais de defesa, previsto na Constituição (art.17) paraguaia, bem como a rapidez com que a decisão fora emitida (Lugo teve 2 horas para preparar uma defesa). Em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, o professor Francisco Doratioto afirmou que “foi uma ruptura política e, definitivamente, não um golpe de Estado”[1], por não ter havido o emprego da violência física na destituição do presidente ou declaração de estado de sítio. Apesar disso, a organização Repórteres sem Fronteiras afirmou que o governo o novo governo se valeu de “manobras para pôr de lado jornalistas considerados incômodos, e mesmo para censurar parcialmente alguns programas”[2].
Em comunicado oficial, a UNASUL[3] declarou:
[…]
Os chanceleres consideram que as ações em curso poderiam ser compreendidas nos artigos 1, 5 e 6 do Protocolo Adicional do Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, configurando uma ameaça de ruptura à ordem democrática, ao não respeitar o devido processo.
[…]
A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, retirou seu embaixador no Paraguai, enquanto os governos brasileiro e uruguaio os convocaram consultas (o que na prática pode ser interpretado como uma retirada). Com esse contexto, os três decidiram suspender o Paraguai do Mercosul, por ferir a cláusula democrática do Tratado de Ushuaia e, na mesma reunião, incorporaram a Venezuela como membro pleno.
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“A partir de hoje entramos em um novo período de aceleração da história que estamos construindo, de mudanças históricas, políticas e geográficas”[4], disse Hugo Chávez. Ainda, garantiu haver democracia em seu país uma vez que sua Constituição fora submetia à aprovação popular.
A Venezuela é considerada a terceira economia da América do Sul, com um PIB de USD 430 bilhões (2013)[5] e uma população de 30,4 milhões. Em termos econômicos, a entrada da Venezuela aumenta o potencial energético do Mercosul, haja vista que os venezuelanos estão entre os maiores produtores e exportadores de petróleo do mundo. Além disso, a Venezuela é uma grande importadora de alimentos e produtos industrializados, o que, de certa forma, cria uma oportunidade de crescimento para o mercado exportador do cone sul.
Há, sem dúvidas, vantagens econômicas com a entrada da Venezuela no Mercosul, mas a condição pela qual esta se deu é um tanto conturbada. Quando da revogação da suspensão do Paraguai, um das condições para seu retorno era justamente a aprovação da Venezuela. Considerando que, o principal ponto de atrito era o presidente Chávez, com sua morte não deveriam haver “problemas” para a aprovação, que aconteceu no fim do ano de 2013.
Hoje, mesmo com todas as críticas ao regime de Nicolás Maduro e seu caráter supostamente antidemocrático (exemplo disso é a entrevista do ex-presidente da Costa Rica, Óscar Arias)[6] a discussão parece não alcançar diretamente a política externa brasileira. O governo não se manifestou oficialmente sobre o enrijecimento do regime, a não convocação de novas eleições parlamentares e o fato de Maduro governar por decreto (algo, aliás, feito durante a Ditadura brasileira).
Houve um atrito de discurso entre a entrada da Venezuela e a suspensão do Paraguai. Sob determinado ponto de vista, o que foi apontado como antidemocrático no conturbado episódio da deposição de Fernando Lugo também foi apontado pela oposição do Congresso brasileiro quando se opôs à entrada do país de Chávez.
O fato de a cláusula do Tratado de Ushuaia não ser pontualmente clara nesse quesito não ajuda a sanar as dúvidas advindas desses conflitos conceituais. O que se configura como democracia depende de critérios ideológicos e subjetivos das políticas governamentais e seus governantes, muito mais do que algum critério técnico e, portanto, juridicamente mais seguro.
O principal problema nesses episódios e coincidências fortuitas não reside tanto no fato na entrada de um país ou na suspensão de outro; se de fato, um deles sofre um golpe de Estado ou se é antidemocrático, mas no fato de não haver conceitos para definir o que o Mercosul quer construir enquanto Bloco internacional. Se não há garantia sobre um aspecto importante de autodeterminação de uma nação – o regime de governo –, o quê dirá de temas verdadeiramente complicados de enquadrar em regras e conceitos rígidos, como personalidade, objetivos comuns, discussões sobre drogas e tráfico?
[1] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2012/07/1113402-o-que-houve-no-paraguai-foi-ruptura-politica-e-nao-golpe-diz-especialista.shtml
[2] http://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/paraguai-reporteres-sem-fronteiras-denuncia-clima-de-intimidacao,b04a97c1068da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
[3] http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3075:comunicado-da-uniao-de-nacoes-sul-americanas-unasul-sobre-a-situacao-no-paraguai&catid=42&lang=pt-BR&Itemid=280
[4] http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,sem-paraguai-mercosul-oficializa-entrada-da-venezuela,908749
[5] http://data.worldbank.org/country/venezuela-rb
[6] http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,%E2%80%98venezuela-deixou-de-ser-uma-democracia,1701741
Referências
– Cervo, Amado Luiz; Bueno, Clodoaldo – História da política exterior do Brasil, Editora UnB, 2012
– Silva, Luiz Inácio Lula da – Discurso Presidencial por ocasião do Encontro Empresarial Brasil-Venezuela, Caracas; Discurso presidencial durante cerimônia de assinatura de atos de cooperação entre Brasil e Venezuela; fevereiro de 2005, Resenha de Política Exterior do Brasil, N. 96, 2005
– Tranches, Renata – Entrevista Óscar Arias, Jornal Estado de São Paulo, 8 de junho 2015
– Nery, Natuza – Brasil condiciona volta do Paraguai ao Mercosul à entrada da Venezuela o bloco, Jornal Folha de São Paulo, 22 de abril 2013
– Menezes, José Maurício Borges de – A cláusula democrática do Mercosul e o julgamento político de Fernando Lugo no Paraguai, 2013
– Goldzweig, Rafel Schmuziger – A entrada da Venezuela no Mercosul: Análise dos aspectos políticos e econômicos, Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais, Vol.1 N.1, [02-29]
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