Mitocracia: a mentira como forma de dominação
A evolução dos meios de comunicação e a digitalização que começou na terceira etapa da Revolução Industrial, promoveram a chamada democratização da informação e o começo de uma nova era.
A informação se transformou na principal commodity do sistema internacional, levando em consideração o significado amplo do termo que se define como um item básico que pode ser transformado; alavancada pela popularidade da rádio, televisão e posteriormente da internet, colocando em segundo plano os riscos que a mesma promove sob o pretexto de sua livre circulação.
Mesmo com exemplos tais como o pânico gerado na pequena cidade de Grover’s Mil quando uma narração da novela de Orson Welles “A Guerra dos Mundos” nos anos 30 , foi confundida como uma notícia real de uma invasão alienígena, gerando o caos na localidade, entre outros muitos exemplos, dos quais talvez o mais reconhecido seja a maquinaria publicitaria do regime nazista, e mais recentemente a popularização das fake News e das Deep fake News nos discursos e ações políticas, delatando o impacto dos meios de comunicação e da propaganda na sociedade e na sua concepção da realidade, e de como noticia e propaganda muitas vezes confluem.
Certo é que aos poucos, diversos países estão implementando leis e normativas para regulamentar os meios de comunicação e o tratamento das informações, além de ressaltar que não todos atuam de forma perniciosa, havendo ainda aqueles que se guiam pela ética do setor, sem embargo é difícil regulamentar algo intangível e passível de diversas interpretações e cuja existência se fundamenta em valores tão flexíveis quanto a democracia e a liberdade de expressão, além de exercer um importante impacto na que foi denominada por Guy Debord como Sociedade do Espetáculo, onde o valor agregado e o fetichismo apontado por Marx, norteiam as cadeias de produção de geração de valor, principalmente quando falamos de propaganda e a consolidação do que conhecemos como marca.
Dentro do campo da política e das relações internacionais, a consolidação da marca é pautada pela imagética que cada sociedade possuí dos seus líderes e de suas relações com o poder, sendo a mesma refutada ou confirmada, pelos meios e fontes de informação aceitos por cada grupo.
Em sua grande maioria as pessoas já não buscam a informação de um fato, mas a confirmação ou negação do mesmo, desde seu ponto de vista particular. A democratização dos meios de comunicação fortaleceu esses canais dando espaço a pós-verdade e ao negacionismo conforme alertou Umberto Eco.
Embora em princípio possa aparentar o auge da liberdade de expressão e da democratização da informação, a falta de uma base crítica e de uma normatização pautada pela realidade, promoveu questionamentos essenciais para a existência de um pacto e de uma coesão social. A partir do momento que um indivíduo só aceita assimilar uma informação pautada pelo seu ponto de vista, já não temos um diálogo, mas monólogos individuais.
Nesse contexto em que a transmissão de uma interpretação é mais importante que a informação em si, perdemos o senso crítico, que não somente é a base da coexistência social, mas também da geração de conhecimento dentro dos mais diversos métodos científicos.
Nos posicionamos em uma bolha que está em constante atrito com outras, gerando a anomia social e a não adesão das normas presentes no pacto social. Cientes dessa realidade muitos são os líderes que aderiram em seus discursos o uso da pós-verdade.
Quando, por exemplo, o atual presidente do Brasil, desde seu ponto de vista e fazendo uso de uma suposta liberdade de expressão fez apologia a ditadura dentro da câmara de deputados, infringindo a norma constitucional gerada como fruto do pacto social brasileiro, se abriu a caixa de Pandora, onde a não adesão à norma, que deveria ser punida como estabelecido pela lei, foi flexibilizada pela interpretação individual da mesma, sendo essa uma competência até então reservada ao poder judiciário.
Posteriormente os excessos já reconhecidos, pelo então juiz Sérgio Moro e do procurador Deltan Dellagnol, em sua odisseia mediática e pessoal no julgamento do ex-presidente Lula, agravou mais a situação, principalmente após a acusação de que usavam como norte a convicção em lugar das provas tão necessárias e que trabalhavam juntos para tecer as ações da acusação durante o julgamento, o que sem dúvidas inseriu a pós verdade como um elemento de base no judiciário.
Nesse ponto o papel da mídia é fundamental para elucidar a população, sem embargo sua orientação ideológica e sua constante busca por se adaptar a crescente demanda de informações personalizadas e a interpretações pré-fabricadas, gerou um espaço para que a pós-verdade se transformasse em uma base informativa válida. É comum ver a brasileiros denunciar o posicionamento de jornais tais como a Folha de São Paulo, acusando a mesma de ser a favor ou contrária ao governo, ou o uso de manchetes polêmicas, como chamariz para as publicações (Clicbait).
O caso brasileiro está longe de ser o único, Trump nos EUA, Putin na Rússia, Maduro na Venezuela, Duterte nas Filipinas entre outros líderes mundiais, fizeram uso dessa transformação dos meios de comunicação em sua ascensão ao poder, e a mídia que por vezes foi responsável, é também vítima dessa própria ascensão.
A pós verdade foi a semente dessa transformação e as fake News e Deep Fake News são seu lado mais cruel, onde um líder já não ocupa somente o poder através de uma liderança carismática, mas se transforma em um mito, ditando sua própria realidade e sua própria interpretação das coisas. E não importa quantas publicações, informes ou estadísticas sejam usadas para contrastar seu discurso, seus seguidores são incapazes de visualizar qualquer coisa além da bolha na qual vivem submetidos. Justificando por exemplo os ataques a Organismos Internacionais e até mesmo outras nações, culturas ou minorias.
A mitocracia instaurada no Brasil é somente um reflexo de grotesco da maximização da liderança carismática, já antiga no país e presente em diferentes estamentos, até mesmo nas igrejas que se transformaram em rebanhos de seguidores políticos.
Assim mesmo a pós verdade não é exclusiva da força política atuante no governo pois também está presente na oposição, embora a mesma em seu intuito de refutar as fake News, em princípio deveria fazer uso exclusivo da verdade, sem embargo a mesma ao ser matizada pelas interpretações individuais perpetua a anomia social.
O perigo de normalizar a mentira como base discursiva tanto por um lado como pelo outro, corrompe ainda mais o sistema democrático sendo mais necessário do que nunca a consolidação de um novo pacto social.
Porém como realizar um novo pacto dentro de uma sociedade já polarizada e partidária? Seria necessário consolidar o coletivismo frente ao individualismo, fomentando o pensamento crítico através da educação, sem embargo haveria interesse das forças políticas?
Vivemos em pleno tecnopopulismo, onde a realidade parece se decantar pelo número de views e curtidas, onde os valores são artificiais assim como as verdades, o auge do individualismo de uma sociedade fundamentada no capitalismo.
E nesse paradoxo fruto da evolução da comunicação e da própria democracia, onde estaria o limite e quem deverá instaurar o mesmo? Pois a falta de diálogo e a fixação pela mentira, deturpou de tal maneira as democracias que já podemos falar em mitocracia, na habilidade de mentir e convencer, acima da verdade e dos fatos, o que sem dúvidas, caso não seja resolvido, levará irremediavelmente ao conflito sendo talvez tarde tentar normatizar e regulamentar a informação ou nossa última chance.

Wesley Sá Teles Guerra, brasileiro, residente em Ourense (Galicia), PHd Candidate em Sociologia e Mudanças da Sociedade Contemporânea, Mestre em Políticas Sociais e Migrações, Mestre em Gestão e Planejamento de Cidades Inteligentes, Pós-graduado em Relações Internacionais e Ciências Políticas, autor do livro Cadernos de Paradiplomacia e do estudo Brasil Galicia. Membro associado do IGADI – Instituto Galego da Análise e Documentação Internacional, do OGALUS – Observatório Galego da Lusofonia e da Associação Impulsora da Casa da Lusofonia. Fundador do Think tank CERES – Centro de Estudos das Relações Internacionais do Brasil. web: www.wesleysateles.com
Bibliografia:
Bellamy, C., & Taylor, J. A. (1998). Governing in the information age. Buckingham: Open University Press.
Traine, Martin (2004), “Neopopulismo. El estilo político de la pop-modernidad”. En: Revista Diálogo Político N°2, 2004. Fundación Konrad Adenauer, Buenos Aires
William Makepeace Thackeray – A Feira das Vaidades o palco da nossa vida. Editora: Wordworth Classics. Londres, 2019.
Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Editora Contraponto. São Paulo, 2007.
Joseph Goebles, Peter Logerish. Umberto Eco. Editora Casa del Libro. Madrid, 2005. Editora Objetiva, São Paulo, 2014