Mudanças climáticas como propulsor de conflitos armados
O olhar difuso nas relações internacionais, pintados com cores cinza no horizonte não é obra apenas dos efeitos devastadores da pandemia do novo Coronavírus (Sars-CoV-2).
Para o observatório Internacional Crisis Group, instituição não-governamental fundada em meados do ano de 1995 e que congrega estadistas de várias partes do globo, dentre os quais Carl Bildt, ex-primeiro ministro sueco e Juan Manuel Santos, ex-presidente da Colômbia e prêmio Nobel da Paz em 2016, revela que há em curso uma série de eventos geopolíticos que poderão implicar em mais desequilíbrios tanto na perspectiva regional, quanto nas tomadas de decisões globais.
A lista elaborada pelo organismo internacional começa com o Afeganistão, após quase duas décadas de conflito, conversações de paz seguem acontecendo, embora um acordo seja considerado frágil entre o governo Ashraf Gani com o Taleban.
A Etiópia é outra nação que flerta com a instabilidade, combates sangrentos iniciados ainda em 2020 no centro do país, na região de Tigray contribuiram para o deslocamento forçado de milhares de pessoas e ameaçam a unidade no país. O Sistema Étnico Federal, implementado como principal bandeira da administração do primeiro-ministro Abiy Ahmed Ali, passou a ser contestado e um diálogo nacional se mostra uma alternativa frente à violência crescente.
Ainda no continente africano, na região do Sahel, há os embates étnicos crescentes no Mali, Niger e Burkina Faso, com ampla participação de extremistas islâmicos dispostos a fundar um califado na região.
Na Líbia, 2021 começou com a assinatura de um cessa-fogo, mas tropas leais aos dois principais grupos políticos insistem nos combates, o que tem dificultado as conversações para unir o país novamente no pós-governo de Muammar al-Gadaffi (1969-2011).
Na Somália, a relação entre o governo federal e líderes de algumas regiões estão tensas. Na eleição que se aproxima, uma votação contestada pode fraturar Mogadíscio frente às demais regiões e encorajar o papel da mílicia islâmica do Al Shabab.
Depois de cinco anos de guerra, o Iêmen se transformou no pior desastre humanitário da atualidade e novas rodadas de negociações, aumentando a pressão por maior protagonismo da Organização das Nações Unidas para amenizar o risco para milhões de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.
A Venezuela também comunga de desastre humanitário e desafios econômicos, oriundos de um governo considerado ilegítimo para grupos de nações e organismos internacionais, o que tem resultado em sanções comerciais e econômicas que ajudam a estrangular a parcela mais frágil da população.
Para um dos poucos aliados do governo de Nicolás Maduro, a Rússia volta a flertar com um aprofundamento das tensões geopolíticas nas cercanias de suas zonas de influência: Com a Turquia, a fim de evitar maior protagonismo de Erdorgan no Cáucaso, Síria e Líbia, quanto no leste da Ucrânia, na Criméia anexada, bem como nos territórios de Donestk, Luhansk, Donbass e no estreito de Kerch, ligação entre o mar Negro e de Azov.
Washington e Teerã devem catapultar simultaneamente novas rodadas de ameças e negociações quanto ao programa nuclear costurado em 2015 pelo grupo P5+1 (China, Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido, mais a Alemanha).
Da listagem desenvolvida pelo International Crisis Group, a agenda sobre questões climáticas é o tema que terá alcance global. Embora alguns observadores internacionais consultados acreditarem que a crise climática e o risco de conflitos armados oriundos desta temática sejam classificados muitas vezes com efeitos indiretos e de baixa intensidade, independentemente dos registros da escalada violenta em regiões do continente africano, do Oriente Médio e América Latina.
Em oposição a este pensamento, o Instituto The Center for Climate and Security, formado por oficiais militares e especialistas em segurança nacional apresentou um relatório em 2007 destacando os riscos cada vez maiores das mudanças climáticas para o segurança.
Neste diagnóstico que foi atualizado seis anos após o primeiro grande estudo sobre o tema ficou concluído que o aumento da certeza científica sobre o aquecimento global foi determinante para conjectura suas conseqüências no âmbito da segurança.
Na Cúpula do Conselho do Atlântico Norte (NAC, na sigla em inglês) ocorrida no País de Gales, em 2014, chefes de Estado e de Governo presentes declararam que as mudanças climáticas, bem como o aumento das necessidades de energia moldarão o futuro ambiente de segurança da Organização do Tratato do Atlântico Norte (NATO, na sigla em inglês) afetando seu planejamento e operações.
Outros organismos internacionais, dentre os quais a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE, na sigla em inglês) e Institute for Environmental Security (IES) também adotaram interpretação semelhante ao tema.
De acordo com o contra-almirante Neil Morisetti, ex-representante especial do Ministro de Relações Exteriores do Reino Unido nas administrações de Gordon Brown e James Cameron, o impacto das mudanças climáticas é uma questão preponderante e as implicações nas estratégicas econômicas e de segurança devem ser alçadas ao mesmo patamar de outras ameaças à prosperidade e estabilidade.
Outra publicação recente na revista Foreign Affairs revela que há muitas projeções de danos a serem causados pela instabilidade climática. Ainda de acordo com o artigo, em média, segundo economistas, um aumento na temperatura local de meio grau Celsius está associado a um aumento de dez a vinte por cento no risco de conflito mortal.
Cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), no âmbito da Organização das Nações Unidas estimam que as emissões causadas pelo homem geraram 1° grau de aquecimento global desde os tempos pré-industriais e com o ritmo acelerado na exploração dos recursos naturais outro meio grau de aquecimento até 2030 é fortemente considerado, impactando principalmente áreas tropicais com períodos cada vez mais quentes.
Dentre os inúmeros exemplos, o norte da Nigéria passou a ser um caso clássico de como as variações climáticas podem alimentar conflitos violentos.
Na década de 1970, a região passou por secas freqüentes, nesse sentido o Saara avançou continuamente para o sul causando a desertificação anualmente de cerca de 351.000 hectares de terra. Como resultado, fontes naturais de água secaram, diminuindo as áreas de pastagens e as terras aráveis.
Na mesma região foi observado também a intensificação da competição entre pastores e agricultores pelos recursos cada vez mais escassos. Um grande número de pastores migrou para o sul do país em busca de terra e isso ocasionou em conflitos com fazendeiros assentados culminando em ambas as comunidades se organizassem para mobilizar grupos armados de proteção.
Diante deste cenário, a violência resultante da escassez de recursos naturais sobrecarregou as forças armadas nigerianas. O embate entre os dois grupos resultou na morte de 875 pessoas entre janeiro e setembro de 2019, o dobro de mortes atribuído aos insurgentes do Boko Haram, por exemplo.
O nordeste da Síria é outro importante ator em contexto de vulnerabilidade climática. A seca severa aliada a políticas deficientes de gestão dos recursos hídricos perdurou de 2006 a 2011. Neste período, 75% das famílias que dependem da agricultura sofreram com a quebra da safra, assim como os pastores que perderam aproximadamente 85% de seus rebanhos.
Segundo analistas internacionais consultados, o levante na Síria em 2011 teve muitas causas, dentre as quais a repressão brutal de Damasco aos protestos iniciais, porém a seca deve ser acrescida na equação, uma vez que a agitação popular e os confrontos violentos começaram em cidades onde há registros de insegurança alimentar e grande fluxo de sírios deslocados para centros urbanos em busca de sobrevivência.
Há outros exemplos importantes do aumento das tensões entre Estados, dos quais se destacam:
1. A disputa entre Egito, Sudão e Etiópia sobre a repressa etíope no rio Nilo.
O aumento das temperaturas e a queda da precipitação pressagiam uma maior escassez de água na bacia do Nilo e comprometem as negociações sobre a barragem. Essa preocupação é um dos grandes temas no Cairo, caso a barragem restrinja o acesso ao suprimento de água, o presidente egípcio, Abdul Fatah Al Sisi ameça com ação militar para impedir a conclusão da estrutura, embora observadores e especialistas na região acreditem que uma ação militar seja improvável no curto prazo, mesmo com as negociações paralisadas.
2. Na Ásia Central, o aumento das temperaturas aprofundou as disputas transfronteiriças de água entre Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão.
3. Na bacia do rio Mekong, as tensões entre os Estados aumentaram com a combinação de secas, inundações e práticas pouco eficientes de gestão dos recursos hídricos.
É através da observação destes eventos enumerados que um estudo do Banco Mundial revelou que muitos países enfrentam pressões crescentes na migração relacionada ao clima, o colapso dos setores agrícolas e condições de vida cada vez mais difíceis mudam o panorama sócio-econômico.
Nesta mesma pesquisa, a instituição avalia que haverá 140 milhões de migrantes climáticos internos na África Subsaariana, sul da Ásia e América Latina até 2050. A pressão avaliam especialistas, deverá ser maior nos países tropicais, onde o aumento da temperatura será mais acentuado.
A migração transfronteiriça pode colocar os recém chegados em competição com os locais por oportunidades econômicas já limitadas o que pode elevar a tensão sócio-política e a xenofobia, aspectos importantes que desencadeiam em violência mortal.
Na perspectiva brasileira, apesar das últimas décadas mostrem progressos em série na agenda climática e de sustentabilidade, especialmente contra o desmatamento e investimentos em geração de energia renovável, o cenário atual apresenta riscos de retrocesso sob a administração de Jair Bolsonaro.
O Brasil atual voltou a reduzir as metas de conservação floretal devido ao avanço no uso da terra. O desmatamento ilegal é o maior risco ambiental e representa uma ameaça à segurança pública, dados os impactos da atividade criminosa em larga escala e legitimada pelo Estado.
No relatório “Climate and Security in Brazil”, do grupo de Especialistas do International Military Council on Climate and Security apontam que a situação ambiental poderá afetar, por exemplo, a demanda por capacidades militares regionais, dando mais ênfase à assistência humanitária e missões de resposta a desastres, algo já testemunhado nos incêndios recentes na região amazônica, cerrado e pantanal.
Segundo os mesmos especialistas, sem esforços coordenados para mitigar a sobrecarga das capacidades militares, o resultado poderá ser uma cadeia de eventos que ameacem a segurança ambiental de modo geral em toda a região.
O grupo de especialistas afirma ainda que áreas da América do Sul, Central e Caribe serão mais afetados pelas mudanças climáticas entre 1° e 2°C até 2100. Regiões áridas e secas, países menos desenvolvidos, pequenos estados insulares, regiões da América do Sul que dependem do escoamento das águas glaciais e dos padrões de chuva influenciados pelos processos hidrológicos da bacia amazônica são os mais ameaçados.
É previsto ainda que os eventos climáticos extremos aumentem a insegurança alimentar e o estresse hídrico na região, criando tensões sociais e políticas, assim como a aumento na freqüência dos deslocamentos forçados o que pode culminar na necessidade do uso de forças regionais e/ou internacionais de estabilização e manutenção da paz.
Com o Brasil no foco da comunidade internacional pelos assuntos relacionados a Amazônia, decorrentes do enfraquecimento sistemático promovido pela administração de Jair Bolsonaro nas agências tradicionalmente responsáveis pelos programas de preservação da vida nativa, coloca o país em posição de contradição no momento em que busca participar de fóruns e processos decisórios internacionais, além de prejudicar a conclusão de acordos comerciais e econômicos com outros blocos, e Estados.
Diante de um cenário tão complexo e abrangente, analistas tendem a crer que lições erradas seriam interpretar as mudanças climáticas como de pouca relevância para conflitos armados.
Como os casos exemplificados acima ilustram, eventos climáticos extremos cada vez mais freqüentes colocam governos e populações sob pressão e a prevenção de conflitos se tornará mais urgente antes de que a agenda climática possa ser revertida.
A lição certa é propor a governos fazer mais para mitigar os efeitos de longo prazo das mudanças climáticas, criando mecanismos que possam regular pacificamente o acesso a recursos, caso isso não ocorra abrirá precedentes para ascensão de grupos armados, desde milícias e gangues, a organizações jihadistas que preencherão o vácuo de poder nas comunidades mais marginalizadas.

Victor José Portella Checchia é formado em Relações Internacionais pela Faculdades de Campinas (FACAMP), com pós-graduação em Direito Internacional pela Escola Paulista de Direito (EPD). Atuou como articulista em Política Internacional para o Centro de Estratégia, Inteligência e Relações Internacionais (CEIRI) ao longo de quatro anos. Teve passagens pela Prefeitura Municipal de Campinas, na antiga pasta de Cooperação Internacional, hoje Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Tem experiência em questões relacionadas o Comércio Exterior, no atendimento a clientes internacionais, projetos de internacionalização de empresas, cooperação econômica e paradiplomacia.
BIBLIOGRAFIA.
https://unfccc.int/news/climate-change-threatens-national-security-says-pentagon
Click to access Erian_Katlan_&_Babah_2010.pdf
https://www.crisisgroup.org/africa/horn-africa/ethiopia/271-bridging-gap-nile-waters-dispute
https://foreignpolicy.com/2020/04/22/science-shows-chinese-dams-devastating-mekong-river/
https://www.crisisgroup.org/global/climate-change-shaping-future-conflict
Click to access CLIMA-E-SEGURANCA-NO-BRASIL.pdf
https://www.cfr.org/backgrounder/envisioning-green-new-deal-global-comparison
Click to access Green-New-Deal-FINAL.pdf
https://unfccc.int/news/climate-change-threatens-national-security-says-pentagon
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