O Afeganistão e o entorno regional
Cenário hoje
Para além das mudanças estruturais externas, o próprio grupo parece ter mudado muito, e de fato, dificilmente alguma coisa fica no lugar após 20 anos de guerra contra uma superpotência e com outros atores envolvidos, tantos externos quanto internos. No ocidente muita gente joga o foco na questão religiosa desprezando o componente étnico a origem do Talibã também pode ser classifica como um forte nacionalismo Pashto com raízes culturais tribais e influência religiosa de uma vertente saudita.
De acordo com Pepe Escobar, hoje o grupo integra cerca de 30% de pessoas de outras etnias, o que pode ser interpretado como uma mudança rumo a uma espécie de arrefecimento do extremismo do grupo, principalmente por ceder territórios estratégicos aos Tadjiques. Novamente segundo Pepe, a região de fronteira entre Afeganistão e Tadjiquistão que está em posse do grupo está sob poder da etnia tadjique.
Já diria Darwin que sobrevive o mais adaptável, não o mais forte ou o mais belo, e sem dúvida essa é a chave para a certa vitória do Talibã. As alianças com os povos vizinhos podem ter sido um fator determinante para a tomada vertical que o grupo está realizando. Segundo um porta-voz do grupo “150 distritos foram tomados sem um único tiro em apenas 6 semanas, que através de combates seria impossível”, o que demonstra um forte apelo popular
A necessidade de se adaptar e o fato de atualmente aparentemente estarem moderados e demonstrando que estão ganhando territórios sem o uso indiscriminado da força não sinaliza que após a tomada do poder as coisas vão permanecer nessa direção. Deve-se lembrar que a Malala, ativista paquistanesa que tomou um tiro na cabeça apenas porque queria estudar, é paquistanesa e foi vítima de um paquistanês pertencente ao Talibã.
Organizações multilaterais
Ao contrário do cenário externo caótico do fim da União Soviética, hoje a Ásia oferece muitos caminhos para a estabilização de um país, os dois principais e que representantes do Talibã já acenaram a favor são: Organização de Cooperação de Xangai e União Econômica Eurasiana.
Organização de Cooperação de Xangai
É uma organização política, econômica e militar da Eurásia, que foi fundada em 2001 em Xangai sob a finalidade principal de criar mecanismos de cooperação contra três problemas que surgiram após os ataques do 11 se setembro: terrorismo, separatismo e extremismo. Cultura e economia sempre permearam também as reuniões.
Os membros são: China Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão, em 2017 entraram Índia e Paquistão. E quatro membros observadores: Afeganistão, Bielorrússia, Irã e Mongólia. Hoje o grupo conta com dezenas de projetos de infraestrutura entre seus membros, principalmente nas áreas de transporte, energia e telecomunicações.
União Econômica Eurasiana
União econômica dos Estados localizados mais no Norte da Eurásia criada pela Rússia, muitos dizem que sob a ideia do próprio Putin, seus membros além da Rússia são: Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Tajiquistão e Quirguistão. O Uzbequistão esteve inicialmente, mas pediu para sair em 2008 sem muitos motivos aparentes.
O nome é auto explicativo, trata-se de uma tentativa de integrar as economias locais sob o guarda-chuva da Rússia, um movimento na direção de manter-se conectada com as antigas repúblicas soviéticas. Portanto, fica claro que a Ásia Central é zona de influência russa, assim como o sudeste asiático é chinês, quase que como um acordo tácito entre as duas potências de separação de áreas para evitar conflitos.
Tabuleiro Geopolítico Asiático
O tabuleiro asiático é sempre muito complicado, tentando resumir e simplificar, é um continente com quatro povos-civilização (Irã, Índia, Rússia e China) com dezenas de pequenos satélites girando na órbita desses grandes pesos pesados do mundo. O termo povo-civilização vem sido usado em algumas análises para tentar exprimir com maior fidelidade o que representa esses países para alago muito mais profundo do que o conceito europeu de Estado-nação.
E as regiões que “sobram” são: sudoeste (chamada pelo ocidente de Oriente Médio, centro (onde ficam os países com final istão e a Mongólia), o sudeste (com onze países, entre eles, dez compõem a ASEAN), e o sul (a Índia domina quase toda região, mas há países importantes também como o Paquistão). Aqui é uma visão geopolítica do continente, alguns países não ficam propriamente nesse recorte que contém uma visão mais política e que por isso deixou de fora a Turquia, um país que tem sua maior parte na Ásia, mas que geopoliticamente tem se voltado pra Ásia recentemente e ainda busca se colocar de maneira mais sólida.
Rússia
Uma delegação do Talibã foi a Moscou no começo de julho para discutir o futuro de ambos. Dizem que a Rússia planeja uma conversa entre cinco partes, acrescentando também EUA, China e Paquistão para debater a nova equação.
O principal interesse do Putin é a garantia de o grupo não vá usar seus contatos com minorias islâmicas no território russo para inflar separatismo e extremismo, assim como não quer que o Talibã faça nenhuma incursão para além de suas fronteiras, a Ásia Central é a joia da coroa da política externa russa.
O Ministro de Relações Exteriores, Sergey Lavrov, tem repetido: “Qualquer turbulência que venha do Afeganistão terá resposta direta da Organização do Tratado de Segurança Coletiva”, que é a aliança militar entre todos os membros da União Econômica Eurasiana.
Para demonstrar força, a Rússia fez manobras militares conjuntas com o Uzbequistão, que atualmente está fora do órgão. Por outro lado, abre-se a possibilidade de Moscou retirar o Talibã da lista de grupos terroristas e planejar acordos econômicos.
China
O Ministro de Relações Exteriores da China Wang Yi esteve recentemente pela Ásia Central, visitou o Turcomenistão, o Tadjiquistão e o Uzbequistão em um contexto de reunião da Organização de Cooperação de Xangai. Houve um encontro entre seus homólogos e também uma conferência intitulada “Ásia Central e Sul da Ásia: Conectividade, Desafios e Oportunidades Regionais”.
Os chineses possuem desejo similar ao russo quanto a garantias de não desestabilização e suporte a minorias islâmicas de seu território, no caso Xinjiang e pode oferecer muito mais do que a vizinha do norte. Pequim já possui enormes investimentos no vizinho e aliado Paquistão com planos de estender a “Nova Rota da Seda” para o Afeganistão.
O atual corredor econômico China-Paquistão que conta com mais de U$ 80 bilhões pode muito bem ser estendido aos afegãos, e com tanta carência em infraestrutura, um acordo benéfico para os dois lados pode ser construído com facilidade, resta saber se o Talibã cumprirá o que acordar e se de fato terá controle de todos o território.
Paralelamente às reuniões entre Talibã, Rússia e China, os dois países fizeram recentemente um exercício militar conjunto com mais de 10 mil soldados de ambos os lados com o nome de “exercícios militares antiterroristas”, o recado está dado e bem claro.
Índia e Irã
Nessa equação o Irã não pode ficar de fora, muito menos a Índia. Atualmente Nova Delhi se recusa em sentar à mesma mesa com os Talibã, que são vistos como braço armado do governo paquistanês. O ministro de Relações Exteriores da Índia Subrahmanyam Jaishankar assistiu à posse do novo presidente iraniano Ebrahim Raisi em Teerã e falaram em “cooperação e coordenação próxima” sobre o Afeganistão.
Indica que os dois países podem estar se juntando para ter um maior poder de barganha na complicada mesa de negociação. Certamente a Índia não ficará parada assistindo a China cooptar outro país próximo e se ver mais isolada geograficamente e economicamente na região.
Certamente a Índia está planejando algum pacote de investimentos no país para rivalizar com a China, Modi pode ser o principal intermediário entre o ocidente e o novo governo afegão. Quanto ao Irã, a fronteira direta entre ambos é a principal negociação, mas o Afeganistão também pode ser um comprador de petróleo do sancionado Irã.
Devido ao passado recente em que xiitas eram perseguidos pelos sunitas do Talibã, a primeira preocupação do ministro de Relações Exteriores do Irã Javad Zarif foi garantir paz e que não houvesse ataques a civis, escolas, mesquitas, hospitais e ONGs caso o Talibã desejasse alguma ofensiva perto da fronteira.
Há oficialmente 780 mil refugiados afegãos no país vivendo em vilas de refugiados ao longo da fronteira sem autorização para se instalar nas principais cidades e também cerca de 2,5 milhões de ilegais dentro do território iraniano.
O ministro Zarif disse recentemente: “O Talibã é e sempre foi parte do povo afegão, não está separado da tradicional sociedade do Afeganistão. Ainda mais importante: têm poder militar.”
Paquistão
Por mais que não assuma publicamente, o país é o grande parceiro e financiador do Talibã. Fez um movimento estratégico de se alinhar com os EUA na guerra ao terror para ficar de fora da linha de frente, mas seu envolvimento com o grupo é conhecido por todos.
Recentemente o primeiro-ministro Imran Khan criticou os EUA em uma entrevista dizendo que o Paquistão só é lembrando por eles quando o assunto é o Talibã, que para todas as outras pautas as demandas paquistanesas são ignoradas. O que de fato é verdade, a parceria de Washington com a Índia é muito mais profunda e importante para o país ocidental.
Com o clima quase que de guerra fria entre Paquistão e Índia e com as toneladas de investimentos chineses no país, não é difícil de imaginar que Islamabad vá ganhar com uma possível aliança triangular. Segurança regional implica em não interrupção dos projetos e torna o país ainda mais estratégico para Pequim.
Conclusão
O nível diplomático do grupo não pode ser menosprezado, desde as negociações com o governo Trump ele tem se demonstrando muito hábil, muitas têm sido as reuniões com organizações internacionais e países. Claro que isso não garante um Talibã mais brando, muito dependerá das negociações e até onde Rússia e China principalmente vão exigir do grupo em pautas como Direitos Humanos, de Gênero e de liberdade política e civil.
É importante lembrar que a pressão externa terá um forte impacto nas decisões internas do novo governo, porém, os países que agora estarão no comando não possuem a mesma ótica do ocidente, então a incógnita está dada. Outro fator que não pode ser esquecido é que os EUA e a Europa se esquecem desses temas também quando convém.
A Arábia Saudita é a grande exportadora da vertente extremista do islã, lar da maioria dos terroristas que atuaram no 11 de setembro, prendeu recentemente uma mulher que se atreveu a dirigir um carro e cortou em pedaços um jornalista dentro de sua embaixada na Turquia, até mesmo CIA e FBI atribuíram o mando ao príncipe. O Canadá não para de fornecer armas ao país e ainda ignora relatórios de organizações internacionais com provas que suas armas estão sendo usadas em civis no Iêmen.
Quando se trata de benefícios e estratégia, pautas humanitárias sempre ficaram em segundo plano, toda nação que pretende ser potência enfrenta esse dilema e opta por esse caminho, é preciso tirar adjetivos de bom e mau quando o assunto é alianças estratégicas, muitas análises tratam como catastrófico o que acontece hoje no país sem mensurar os desastres de vinte anos de ocupação estrangeira.
Outro ponto que não é mencionado é o tamanho da incompetência das potências que por lá estiveram, em duas décadas não foram capazes de ajudar na costura de alianças que tornassem o país estável, o governo caiu sem luta alguma e com denúncias de que o presidente deixou o país com milhões de dólares do Tesouro Nacional.
As moedas de trocas do Talibã serão seus contatos no exterior, um país destroçado por dentro sedento por investimentos básicos e um solo com cerca de 3 trilhões de dólares em minérios. Mas ainda há outros grupos dentro do país que controlam algumas regiões e que alguns analistas apostam em um cenário como o sírio, em que o governo não consegue controlar a totalidade do território.
Esse fragmento de controle pode ser o cenário perfeito para os EUA e demais países que queiram desestabilizar a região visando a não expansão da influência russa e chinesa, alguns alegam que a saída definitiva das tropas da OTAN seja justamente com esse intuito, o de fomentar guerras híbridas em áreas estratégicas para esses investimentos em infraestrutura.
O Talibã alega que seu objetivo é apenas “estabelecer um governo islâmico e ter boas relações com todas as nações”, que embaixadas e consulados não serão atacados, e finaliza alegando que “o objetivo é pôr fim à ocupação estrangeira”.
Por uma caprichada do destino, justamente quando o ataque ao World Trade Center completar exatos 20 anos, o Talibã estará celebrando sua retomada do poder no Afeganistão. Se tem algo que politicamente não é subjetivo é o Simbolismo!

Valter Peixoto Neto, formado em Comércio Exterior (Unibr), pós-graduado em Relações Internacionais com ênfase em Diplomacia (Unisinos). Trabalha com remessas internacionais em uma casa de câmbio e faz pesquisas independentes sobre o Sudeste Asiático. Possui site e podcast onde procura difundir e democratizar o debate e o conhecimento na área de Relações Internacionais. Editor Site: MenteMundo R.I.