O Dragão chinês voltado para o Oriente Médio?
Nos últimos anos e, sobretudo após a crise econômica de 2008, diversos acadêmicos, tais como Fared Zakaria, Dvid Li e Henry Kissinger (ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos e condecorado com o Prêmio Nobel da Paz), se lançaram em debates para responder aos questionamentos acerca da “ascensão chinesa” e seu potencial transformador das relações econômicas internacionais para os anos que se sucedessem. Em grande parte, tais questionamentos relacionavam-se ao poder econômico do país asiático e à sua capacidade de moldar uma espécie de corrente contra-hegemônica para fazer frente ao poderio norte-americano e a sua “questionável unipolaridade” ou a possibilidade de uma acomodação pragmática chinesa com relação ao status quo do Sistema Internacional e ao desenvolvimento de políticas relacionadas aos aspectos políticos domésticos e regionais.
O rápido crescimento econômico verificado nas últimas décadas, de cerca de 10% ao ano de acordo com dados do Banco Mundial, trouxe alguns desafios, tais como desequilíbrio econômico, social, de sustentabilidade e pressões demográficas relacionadas ao envelhecimento da população. Desde o ano passado observou-se uma China que, depois de décadas de altos índices de crescimento econômico, sobretudo do produto interno bruto (PIB), vivencia um novo estágio em seu processo de desenvolvimento – denominado pelo Presidente Xi Jinping como “Novo Normal” – caracterizado pela busca de um reequilíbrio crucial e pela diversificação de sua economia para alcançar um crescimento mais lento, porém economicamente sustentável, e uma distribuição mais uniforme dos ganhos, sobretudo através do estímulo ao desenvolvimento de regiões do país que atualmente são mais pobres e ou menos desenvolvidas.
Em meio a este cenário de desafios econômicos domésticos e à busca de um papel de maior influência no cenário regional – e quiçá internacional – a China de Xi Jinping deu início a uma série de reformas na política externa e econômica para lidar com os referidos novos desafios e alcançar novas oportunidades de projeção regional e crescimento nacional. Dentre as principais iniciativas do governo de Jinping destacam-se duas: a “The Belt and Road” – peça fundamental para a sua política externa e para a nova estratégia econômica doméstica, que compreende uma rede de projetos de infraestrutura para interligar diversas regiões da Ásia Central – e sua ambição em intensificar o relacionamento com países do Oriente Médio – por conta de uma série de fatores geoestratégicos (como acesso ao petróleo para abastecer sua demanda ascendente e o acesso a mercados novos) e pelo desejo de se tornar um ator mais influente em assuntos globais –, fato que distancia o país de sua tradicional e cautelosa política externa para a região, pautada pela não-intervenção, pelo respeito à soberania dos demais Estados e pelas falas retóricas clamando pela solução pacífica de conflitos, tal como a guerra civil síria.
De um ponto de vista estratégico, existem fatores de ordem geopolítica e econômica que impulsionam a China a desenvolver e implementar as políticas mencionadas acima, sendo que entre os primeiros destacam-se a estratégia de hedging ou proteção para garantir ao país asiático novas rotas de abastecimento, sobretudo energético e de recursos minerais em geral, e distribuição, no sentido de garantir a manutenção do comércio, caso haja um conflito na região. Quanto aos aspectos econômicos observa-se a transição de uma economia pungente para um “novo normal” baseado em um crescimento relativamente baixo e na busca em estimular um crescimento equitativo através da interligação econômica de áreas mais pobres do país àquelas já desenvolvidas do sul.
A atuação de Xi Jinping, com sua visita realizada no mês passado a países-chave do Oriente Médio, tais como a República Islâmica do Irã, a Arábia Saudita e o Egito, e com a oficialização da “Política Árabe”, deixou clara a intenção do país em ampliar a ação e a cooperação junto a países do Oriente Médio, inicialmente sob a égide da iniciativa “The Belt and Road”, que inclui a importação de energia e o acesso a novos mercados. Porém, analistas de conjuntura e estudiosos divergem acerca dos desdobramentos políticos de tal iniciativa, sobretudo se considerarmos que a atuação chinesa embora constante na região (leia-se por conta de sua demanda ascendente por petróleo) traduziu-se em pouco (ou até mesmo nenhum) envolvimento em questões estritamente políticas, sejam estas de âmbito nacional ou regional, o que fez com que o país asiático demonstrasse a dificuldade ou a falta de vontade de se converter em uma força diplomática e militar, tal como os Estados Unidos.
No que diz respeito ao Oriente Médio, macro-região tradicionalmente observada como área de atuação e de resguardo de interesses de antigas potências europeias e mais recentemente dos Estados Unidos, o posicionamento chinês guiou-se, sobretudo ao longo das últimas duas décadas – quando se tornou um grande importador de petróleo –, pela busca em balancear seus interesses energéticos sem ter que lidar (ao menos de maneira direta, como ocorre com os Estados Unidos) com os custos da ação em uma região arrastada por suas profundas divisões religiosas e por uma política complexa. Desta maneira, as transações entre o país asiático e os países da região, com destaque principal àqueles pertencentes ao Golfo Pérsico, basearam-se em aspectos econômicos, sendo que a contrapartida chinesa para os produtos energéticos eram máquinas e outros bens manufaturados.
Ao longo dos últimos cinco anos, as autoridades chinesas observaram os desenvolvimentos políticos do Oriente Médio com um misto de tensão e ansiedade. Após abster-se com relação à Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que permitiu uma atuação mais efetiva no conflito civil instaurado na Líbia, os formuladores de política externa chineses perceberam que tal postura – baseada, ao menos no campo retórico, no princípio da não-intervenção – não foi capaz de garantir os interesses chineses no país, historicamente relacionados a acordos para a compra de petróleo e vendas de armas. Além disso, a demora de Pequim para o reconhecimento do Conselho Nacional de Transição líbio, bem como a falta de iniciativa com relação à campanha militar, foram observados pela comunidade internacional como uma espécie de rejeição, por parte do governo chinês, do “movimento democrático” vivido pela Líbia em constante transformação política (SUN, 2012).
Desta forma, o governo chinês alterou seu posicionamento com relação à questão síria: ao invés de se abster em uma resolução final, o país optou por seguir a sua premissa de país membro do CSNU e utilizou o veto para impedir uma resolução que permitisse algum tipo de intervenção militar no país do Levante. Através do referido posicionamento, o governo de Pequim observou a possibilidade de salvaguardar seus interesses políticos econômicos, diplomáticos e domésticos: a) o veto em conjunto com a Rússia evitou o possível isolamento de Moscou e demonstrou a intensidade do relacionamento sino-russo, um elemento importante da estratégia de hedging desenvolvida pela China para garantir um aprofundamento das relações econômicas e diplomáticas e ampliar sua possibilidade de influência no sistema internacional; b) o veto foi visto como forma de manter o status quo no Oriente Médio, uma atitude que de, acordo com a visão chinesa, seria melhor para a região do que uma intervenção militar para a retirada do poder de Assad, um governante que possui apoio do Irã; c) evitou a criação de um precedente para legitimar uma intervenção militar como forma de remover um governo soberano em conflito com opositores ditos democráticos, apoiados por países ocidentais, tendo em vista a complexa política chinesa no âmbito doméstico para manter a coesão interna.
Novas diretrizes, novo relacionamento?
No início deste ano, antes mesmo de realizar a primeira visita oficial direcionada apenas a países do Oriente Médio, o governo de Xi Jinping divulgou o conteúdo de seu primeiro documento oficial dedicado exclusivamente à região. O referido documento traz um breve histórico das relações entre China e Oriente Médio (desde as trocas de mercadorias, realizadas através da antiga Rota da Seda), apresenta os princípios que irão nortear as relações entre os mesmos e estabelece as principais áreas de aproximação, sendo que entre elas se destacam: a cooperação política, a cooperação de investimentos e de comércio, o desenvolvimento social e a cooperação na área da paz e segurança.
Entre os aspectos mais gerais desenvolvidos ao longo do documento, dois se destacam mais por seus aspectos estratégicos e pragmáticos. O primeiro é a cooperação de investimentos e de comércio entre a China e os ditos “países árabes” (interessante o fato de que o documento não cite diretamente países que integram o Oriente Médio) sob a égide da mega-iniciativa “The belt and road” – que une investimentos em infraestrutura para a interligação entre diversas regiões da Ásia e África, acesso a mercados e fontes de recursos energéticos, o comércio de bens diversos além das commodities e cooperação financeira. De acordo com a proposta chinesa, a cooperação com os países árabes seria desenvolvida através de um padrão pragmático de três partes: a cooperação energética seria o pilar principal, o investimento na construção de infraestrutura e no comércio sustentaria tal pilar e a terceira parte seria o desenvolvimento de novas tecnologias na área de energia nuclear, tecnologia espacial e novas energias.
O segundo é a preocupação em auxiliar no desenvolvimento de medidas comuns, cooperativas e sustentáveis de segurança para a região do Oriente Médio, em especial a cooperação no combate ao terrorismo, sobretudo por conta da ameaça representada pelo Estado Islâmico e pelos atentados realizados por este grupo – tal como foi na França e no Mali. Embora o documento anteriormente citado não mencione diretamente quais serão as estratégias utilizadas pela China para lidar com a ameaça terrorista no Oriente Médio, alguns aspectos são claros: tendo em vista as declarações anteriores do país asiático e sua baixa atuação em operações militares no exterior, é possível inferir que ao invés de utilizar de um estilo mais agressivo, como é o caso do norte-americano, a China deve concentrar seus esforços em meios financeiros de auxílio a forças militares locais.
A estimativa feita pela Agência Internacional de Energia – que no ano de 2030 a China irá ter que importar cerca de 75% de sua demanda energética – diz muito sobre os motivos iniciais que levaram o país asiático a desenvolver relações econômicas com os países do Oriente Médio: a necessidade de alcançar sua segurança energética. Durante cerca de duas décadas o país asiático conseguiu manter seu perfil cauteloso junto aos países do Oriente Médio, promoveu investimentos em infraestrutura, iniciou operações de extração de recursos energéticos estratégicos à sua demanda industrial, ou seja, consolidou uma posição importante junto aos países da região através do estreitamento e ampliação de condições econômicas.
No entanto, os últimos cinco anos demonstraram às lideranças chinesas que a atuação política será necessária – lição apresentada após severas críticas aos posicionamentos acerca das questões de intervenção militar na Líbia e na Síria –, mesmo que tal ação seja pautada ao menos na demonstração da vontade de reagir à atuação norte-americana na Ásia e ao mesmo tempo garantir sua posição no Oriente Médio farto das interferências de atores “tradicionais” à região, tais como os Estados Unidos, França, Inglaterra e até mesmo Rússia, que já possuem uma forte presença histórica, política e econômica em conflitos e nos assuntos internos de países que configuravam sua área de influência. Assim, estabelecida como uma espécie de contraponto à “tradicional política ocidental”, a China observa e potencializa os espaços que consegue adquirir: Xi Jinping foi o líder estrangeiro a visitar o Irã após a implementação oficial do acordo celebrado pelo país persa com cinco grandes potências (Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e China) que limita seu programa nuclear e aos poucos retrai as sanções econômicas a ele impostas. A atitude chinesa, fruto de um misto de cálculo de oportunidade ou de um golpe de sorte – se considerarmos que a viagem do líder chinês já estava marcada e havia sido postergada por conta da tensão entre Irã e Arábia Saudita após a intervenção da segunda no Iêmen –, pode trazer ao país asiático uma vantagem na competição pelo mercado iraniano pós-sanções econômicas.
Referências Bibliográficas
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LIN, Justin Yifu; WANG, Yan. China’s Contribution to Development Cooperation: Ideas, Opportunities and Finances. Development, v. 119, 2015.
SINGH, Michael. China´s Middle East Tour: Beijing Post-Sanctions Ambitions. Foreign Affairs, 2016. Disponível em: <https://www.foreignaffairs.com/articles/china/2016-01-24/chinas-middle-east-tour>. Acesso em: 08.fev.2016.
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____________. Full Texto of China´s Arab Policy Paper. Disponível em: <http://news.xinhuanet.com/english/china/2016-01/13/c_135006619.htm>. Acesso em: 08.fev.2016.
Imagem: Presidente Chinês Xi Jinping em encontro com o Presidente da República Islâmica do Irã, ao longo de sua viagem para o Oriente Médio, realizada em janeiro de 2016. Fonte: Ministério de Assuntos Exteriores da República Popular da China.
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