O Paradigma do Estado: do neoliberalismo ao novo desenvolvimentismo na América Latina
A primeira década do século XXI na América Latina foi marcada por um movimento de questionamento acerca do paradigma neoliberal, que desde meados da década de 1980 e com impulso e conclusão na década posterior passou a conduzir e moldar os Estados nacionais em detrimento do paradigma do Estado desenvolvimentista. Neste sentido, embora a região tenha adotado o paradigma neoliberal, sobretudo após o Consenso de Washington, observou-se que não existiu uniformidade com relação aos estágios das reformas internas necessárias para conferir aos países latino-americanos uma atuação na nova ordem internacional e os líderes políticos conduziram seus países a diferentes “níveis” de modernização e ou desenvolvimento, sendo o Chile e a Argentina expoentes de um processo de reforma radical rumo ao neoliberalismo. As eleições da primeira década do século XXI trouxeram aos governos de alguns dos países da região líderes de oposição que questionavam as conseqüências da experiência neoliberal e buscavam novas formas gerir e desenvolver o Estado.
As experiências neoliberais e seus reflexos na configuração e concepção dos governos latino-americanos na primeira década do século XXI
A primeira década do século XXI na América Latina foi marcada por um movimento de questionamento acerca do paradigma neoliberal, que desde meados da década de 1980 e com impulso e conclusão na década posterior passou a conduzir e moldar os Estados nacionais em detrimento do paradigma do Estado desenvolvimentista. As eleições da primeira década do século XXI trouxeram aos governos de alguns dos países da região líderes de oposição que questionavam as consequências da experiência neoliberal e buscavam novas formas conceber, gerir e desenvolver o Estado.
O discurso de cunho neoliberal, que predominou em países como os Estados Unidos e a Inglaterra na década de 1980, encontrou ressonância anos mais tarde em alguns países da América Latina em um momento em que o modelo de Estado desenvolvimentista latino-americano havia entrado em crise, sobretudo por conta da crise financeira – a crise das dívidas externas da referida década – que fragilizou as economias nacionais e permitiu, assim, um questionamento acerca da eficiência do referido modelo de Estado. O modelo de Estado desenvolvimentista, resguardadas as especificidades de alguns países, caracterizou-se pela intervenção estatal na economia, com vistas a promover o desenvolvimento econômico e pela proteção e promoção de indústrias nacionais, no início através de uma estratégia de industrialização por substituição de importações (BRESSER-PEREIRA e THEUER, 2012). Neste sentido, embora a região tenha adotado o paradigma neoliberal, sobretudo após o Consenso de Washington, não existiu uniformidade com relação os estágios das reformas internas necessárias para conferir aos países latino-americanos uma atuação na nova ordem internacional e os líderes políticos conduziram seus países a diferentes “níveis” de modernização e ou desenvolvimento, sendo o Chile e a Argentina expoentes de um processo de reforma radical, caracterizado por aspectos como privatizações, abertura de mercado e até mesmo a dolarização da economia, no caso argentino.
O Chile e o México foram os primeiros países latino-americanos a se submeterem ao neoliberalismo. No caso mexicano, como afirma assertivamente CARVALHO (1997), a adesão aos princípios do neoliberalismo (ainda no início da década de 1980) conduziu a políticas públicas, tais como a abertura de fronteiras, retirada do Estado como gestor e a redefinição (no campo econômico) da produção nacional com foco no mercado externo como setor dinâmico de crescimento, sobretudo através das maquiladoras. As referidas ações além de reduzirem o papel do Estado, fato que alterou a concepção anteriormente desenvolvida acerca do mesmo, que oscilava entre o keynesianismo e o populismo, conduziram à formulação de uma política externa que se distanciou das discussões acerca do processo de integração regional da America Latina por conta de alguns aspectos: a) o ingresso no GATT e a posterior redução de tarifas para produtos norte-americanos foi um passo importante em direção à adesão ao NAFTA (o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio); b) ao longo do governo de Carlos Salinas (1988-1994) o pensamento dirigido à America latina foi gradualmente substituído por uma série de acordos bilaterais, principalmente com os Estados Unidos; c) a entrada em vigor do NAFTA, seguida pela OCDE.
As reformas sugeridas através do Consenso de Washington trouxeram transformações importantes nos países latino-americanos, visto que até então alguns destes possuíam políticas econômicas de caráter protecionista, ao evitarem o livre mercado e manterem barreiras tarifárias para proteger as indústrias nacionais, posturas estas que conduziram aos déficits fiscais, inflação e crise cambial. Durante a década de 1990 as reformas do receituário ortodoxo implementadas trouxeram resultados positivos atribuídos às reformas do receituário ortodoxo, tais como a redução da inflação e crescimento acelerado, porém, os resultados e o progresso se mostraram insustentáveis para um período futuro: o nível de pobreza não sofreu uma redução significativa e a distribuição de renda estagnou-se, as políticas que atrelaram de maneira artificial as moedas locais ao dólar norte-americano reduziram a competitividade dos exportadores, os investimentos em equipamentos e infraestrutura não foram capazes de garantir o crescimento econômico vivenciado pelos países durante as experiências neoliberais, não conseguiram reduzir seus gastos ou aumentar os impostos e os déficits governamentais permaneceram elevados (EDWARDS, 2010).
Enquanto os países da América Latina vivenciaram o fracasso da ortodoxia representada pelo receituário do Consenso de Washington e pela transformação do modelo de Estado desenvolvimentista para o de Estado neoliberal (modelo de Estado este que aproximou os países da região ao modelo do estado norte-americano), os países em desenvolvimento que rejeitaram o referido consenso e optaram por manter o controle sobre sua economia, taxas de câmbio e formulação de políticas públicas, ou seja, que adotaram um modelo de Estado desenvolvimentista, obtiveram resultados diferentes daqueles dos países latino-americanos: altas taxas de crescimento e a continuidade do processo de industrialização, que os conduziu do modelo de substituição de importações para o modelo de exportação. Este é o caso dos países asiáticos, sobretudo a China, em que o governo desenvolveu uma forma diferente de Estado, caracterizada pela forte intervenção estatal e bons indicadores econômicos, como controle da inflação, e a adoção de taxas de câmbio favoráveis às exportações. Este modelo de Estado chinês, baseado na forte intervenção estatal e ao mesmo tempo na preocupação em alcançar uma inserção assertiva em uma economia globalizada, como através do investimento em global players e da exploração de vantagens comparativas (fatores de produção, de modo geral), colocou o país asiático à frente de diversos países da América Latina, como o Brasil e o México nas décadas subseqüentes.
As crises vivenciadas por países como Brasil e Argentina no fim da década de 1990, relacionadas inicialmente com a crise cambial profunda, trouxeram descontentamento e desconfiança de parte das lideranças nos países da America Latina acerca das instituições econômicas internacionais – como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial (BM) – e suas orientações ortodoxas no âmbito das políticas macroeconômicas e políticas públicas, visto que tais lideranças e governos no poder passaram a atribuir seus fracassos econômico e social, relacionados à crise cambial, deterioração de índices sociais através do aumento do desemprego e da pobreza. O descontentamento com relação ao paradigma neoliberal que influenciara até então a concepção dos Estados latino-americanos foi transposto também nas eleições realizadas no início dos anos 2000 em países como Venezuela, Argentina, Brasil, Bolívia e Equador e as lideranças de orientação de “centro-esquerda, esquerda nacionalista ou nacional desenvolvimentista” eleitas nos referidos países passaram a buscar medidas alternativas para a retomada do processo de desenvolvimento e implementar agendas desenvolvimentistas e sociais que nem sempre são aceitas pelos grupos nacionais de cunho liberal e estados desenvolvidos. Neste sentido, um discurso de cunho nacionalista passou a ser utilizado por lideranças políticas ditas populistas ou nacionalistas para justificar um retorno ao protecionismo econômico, tributação de exportações, aumento da regulação e do poder do governo executivo.
No âmbito acadêmico, analistas passaram a discutir que a região estaria vivenciando a construção – ao menos no plano retórico e de formulação de políticas interna e externa – de um novo modelo ou ideal de Estado, que concentra os discursos contrários aos ideais neoliberais e propõe novas perspectivas acerca do desenvolvimento e, consequentemente, do papel do Estado. A referida corrente de pensamento, denominada de neodesenvolvimentista ou novo-desenvolvimentista, caracterizou-se como:
[…] é uma forma de Estado adaptado ao capitalismo global, a um estágio do capitalismo onde a competição econômica entre as nações é fundamental. O papel do Estado, nesse caso, é criar oportunidades de investimento, investir ele mesmo quando necessário e regular os mercados, os financeiros em particular, para assegurar o crescimento com estabilidade de preços e a estabilidade financeira. O desenvolvimento para os novos-desenvolvimentistas é visto não só como crescimento econômico e da industrialização, mas também como a redução das desigualdades sociais e melhoria no padrão de vida da população (BRESSER-PEREIRA e THEUER, 2012, p.823).
Em uma análise das políticas relativas ao papel do Estado, de seu processo de formulação da política macroeconômica e social adotadas pelos países latino-americanos no início do século XXI é possível buscar subsídios para verificar a adoção (ou não) do paradigma neodesenvolvimentista ou novo-desenvolvimentista, bem como as diferenças de adesão entre os países da região.
No Brasil, com vistas a alcançar o crescimento econômico e social o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, eleito presidente em 2002, deu início a medidas políticas, como por exemplo: políticas de transferência de renda, que aumentaram o poder aquisitivo da classe mais pobre; adoção de uma política industrial mais ativa, através do fortalecimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da retomada de políticas de apoio que concediam financiamentos às empresas nacionais a taxas favorecidas ou subsidiadas. No âmbito da política externa, o governo de Lula fez diversas críticas à proposta da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), à proposta de integração hemisférica apresentada pelos Estados Unidos e conferiu prioridade a uma agenda composta pela integração regional, sobretudo pela reconstrução do Mercosul e ação ativa para a implementação da Iniciativa para Integração da Infraestrutura Sulamericana (IIRSA) , de forma a alcançar um espaço para a liderança brasileira, e pela busca de parcerias estratégicas com potências emergentes (BRESSER-PEREIRA e THEUER, 2012; VIZENTINI, 2005).
De modo diferente do Brasil, alguns países da América Latina, como Venezuela, Argentina e Bolívia, adotaram agendas de cunho nacionalista mais reativas, que faziam críticas abertas e diretas à globalização (e seus efeitos tidos como negativos para os países em desenvolvimento) e pareciam concordar que a região precisava, depois do período de crise do paradigma neoliberal, desenvolver medidas que ampliassem o papel dos governos em assuntos relativos à economia. Na Venezuela e Bolívia as lideranças de Chávez e Morales se consolidaram de acordo com o populismo (político e econômico) e sua agenda reativa, que buscou combinar o crescimento econômico e a melhoria na distribuição de renda, nacionalizou empresas privadas (sobretudo em setores estratégicos como o energético) e permitiu ao governo retomar o controle de preços, investimentos e barreiras tarifárias. No caso argentino, a administração de Néstor Kirchner (iniciada em 2003) comprometeu-se com as escolhas desenvolvimentistas iniciadas na administração anterior e buscou um “novo desenvolvimento” ancorado em uma política de intervenção estatal crescente na economia, principalmente através da estruturação de uma política macroeconômica e de incentivos ao setor produtivo, do questionamento dos interesses externos de grandes potências, da reestruturação da questão da dívida externa (sobretudo com o estabelecimento de uma política fiscal prudente), da manutenção de uma taxa de câmbio real e competitiva e pela busca pelo equilíbrio fiscal (CUNHA e FERRARI, 2009). A sucessora de Kirchner buscou manter os rumos da intervenção na economia, sendo a renacionalização da empresa petrolífera YPF, controlada pela espanhola Repsol em 2012 um ponto alto da intervenção em setores chave da economia. Depois de alguns anos de bons resultados, como a recuperação da indústria argentina e a redução da pobreza, o governo passou a ter problemas com relação aos mecanismos de controle da inflação e uma crise política.
De acordo com a análise desenvolvida ao longo deste texto ficou evidente que a América Latina entrou, na primeira década do século XXI, em uma nova fase da discussão acerca do modelo do Estado que marcou o final da hegemonia do neoliberalismo e das políticas sugeridas pelo Consenso de Washington na América Latina. Os líderes que ascenderam passaram a canalizar discursos contrários aos ideais neoliberais (baseados nos maus resultados vividos pelas populações ao longo de duas décadas) e buscar através da adesão aos ideais do chamado novo desenvolvimentismo ou neodesenvolvimentismo novas estratégias nacionais de desenvolvimento – estratégias estas que de forma geral ampliavam o papel do Estado como regulador e estimulador de investimentos que conferissem competitividade ao país no cenário internacional (sobretudo através de políticas cambiais para manter os produtos com preços competitivos) e desenvolvam uma agenda social que atenda às demandas sociais das populações mais pobres ou marginalizadas no aspecto político.
Referências Bibliográficas
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Imagem: Representantes de países da América Latina e Caribe na 1ª Cúpula da CELAC, em 2011, na Venezuela. Fonte: Roberto Stuckert Filho/PR; Planalto da Presidência da República.
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