O que aprendemos com a Primavera Árabe?
No mês passado, há exatos cinco anos, iniciaram-se as revoltas populares no Oriente Médio (iniciando-se na Tunísia) e, embora até o presente momento analistas de conjuntura e especialistas em questões diversas da região divirjam acerca das consequências de tais revoltas, alguns aspectos parecem sobressair nas análises: os temores acerca da formação de novas lideranças autoritárias nos Estados que tiveram seus governantes depostos (como é o caso do Egito, Tunísia e Líbia, sendo que neste último ocorreu o agravante de uma intervenção militar desastrosa liderada por potências ocidentais) e, o extremismo advindo de organizações radicais como a Al-Qaeda do Magrebe e o Estado Islâmico- talvez, o maior desafio do tabuleiro de xadrez regional.
Uma análise dos principais atores envolvidos nas transformações políticas recentes, bem como de seus objetivos/interesses diversos (políticos, econômicos, geopolíticos), e dos fatores de fragmentação interna e externa dos Estados envoltos no turbilhão popular permite as bases para a compreensão da conjuntura e do encaminhamento de seus possíveis cenários.
Tunísia e Egito: experiências muito opostas
Em dezembro de 2010 um evento dramático foi noticiado ao redor do mundo: um jovem tunisiano que trabalhava como vendedor na rua ateou fogo ao próprio corpo em uma atitude desesperada contra a pobreza, o desemprego e a falta de liberdade que assolavam seu país. A população incomodada com as mesmas questões que o jovem iniciou, assim, uma série de manifestações com demandas de direitos políticos, como, por exemplo, o direito de escolher os destinos de seus governos, elegendo os representantes dos mesmos, e em busca de liberdades de expressão e revolta contra a corrupção.
Tais manifestações conseguiram derrubar o governo de Ben Ali, que tinha estendido seu mandato por mais de vinte anos na presidência através de argumentos relacionados à sua política de segurança (sobretudo a noção de estabilidade interna e externa, com sua atuação contra o extremismo). Inicialmente, um dos grandes desafios do governo de transição liderado pela coalizão Ennahda foi coordenar os interesses das diversas partes envolvidas nas manifestações, como os islamitas de vertente secular e os movimentos sindicais. No entanto, o processo de transição logrou resultados positivos: um novo Parlamento e o Presidente foram legitimamente eleitos; uma Constituição mais democrática e liberal foi aprovada em 2014, e a liberdade de expressão foi alcançada.
O êxito inicial das manifestações de jasmim (flor símbolo da Tunísia), outra forma com que as manifestações na Tunísia passaram a ser referidas no mundo árabe, em derrubar o governo autoritário ao qual era submetida serviu de inspiração para a população egípcia, sobretudo jovem, reunir-se na conhecida praça Tahrir à favor de uma agenda inicialmente semelhante àquela do país mediterrâneo. Em novembro de 2011, diante das pressões das manifestações populares e de sua repercussão ao redor do mundo, sobretudo através da Internet e redes de relacionamento, o presidente egípcio Hosni Mubarak renunciou ao seu cargo, fato que encerrou um longo período de ditadura – iniciado ainda na década de 1950 através do governo nacionalista de Adbel Nasser e sucedido por Mubarak. No entanto, diferentemente do que ocorreu na Tunísia, os responsáveis pela transição egípcia foram predominantemente militares que, ao invés de cumprirem a função de auxiliar o processo de transmissão do poder ao convocar e garantir eleições legítimas, acabaram por instaurar no país um golpe ao retirarem do poder o presidente eleito Mohamed Morsi (da Irmandade Muçulmana) e empossar em seu lugar o general Al-Sisi, que aparentemente possui certo apoio popular.
O cenário político egípcio sofreu diversas mudanças desde a deposição de Mubarak, em 2011, sendo que entre elas se destacam: as diversas correntes islâmicas do país (seculares, moderados e radicais) que inicialmente venceram as eleições, como a Irmandade Muçulmana que obteve êxito ao eleger Morsi para a presidência, foram excluídas ou marginalizadas e enfraqueceram-se do ponto de vista do apoio público e financeiro enquanto figuras tidas como “nacionalistas” ou até mesmo ligadas ao regime de Mubarak ressurgiram no campo político; o presidente Al-Sisi utilizou-se de um discurso visto como nacionalista – no sentido de “salvar a nação de um caos iminente”, representado pelo empoderamento de partidos islâmicos – para justificar medidas extremas e impopulares tomadas em seu governo, tais como a pouca liberdade de expressão e associação ao longo do processo eleitoral; e a dificuldade de organização da oposição (sobretudo de pautas e interesses) formou um Parlamento pouco coeso, que não tem força suficiente para conter as manobras de Al-Sisi. Os eventos da política doméstica colocam em xeque a possibilidade de uma transição egípcia para a democracia, um caminho oposto àquele que foi observado no caso da Tunísia.
Síria: opressão e instabilidade
No tocante à questão da Síria, embora a situação no referido país inicialmente fosse similar àquela em que se articulou a intervenção na Líbia – em que o governo figura como principal agente de violência contra as denominadas forças de oposição e parcelas da população que passaram a clamar por reformas democráticas, alterações nos regimes vigentes e direitos –, alguns fatores de distinção entre ambas as situações agiram (e continuam a agir) como uma força contrária a uma resposta semelhante à da Líbia (uma intervenção militar liderada por potências ocidentais). Entre eles destacam-se: o apoio contínuo do Irã e Rússia ao governo de Assad (e a capacidade do mesmo em manter-se no poder) e o interesse de diversos países em manter o status quo – embora que questionável – do país como peça-chave no jogo de poder regional, evitando uma mudança de regime como a do Iraque e Líbia, em que intervenções ocidentais desastrosas ampliaram a dimensão dos conflitos internos e conduziram a mais instabilidade (BUCKLEY, 2012).
O debate conduzido por acadêmicos e formuladores de política externa acerca da questão síria recaiu, inicialmente, sobre a paralisação do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), sobretudo após a intervenção militar na Líbia e o questionamento acerca da realização de novas intervenções em conflitos de nacionais e a falta de ação de dois membros permanentes – a China e a Rússia, uma variável que permite a manutenção do status quo de influências e interesses nacionais na Síria.
De acordo com TRENIN (2014), o posicionamento da Rússia acerca da questão síria se guiou por seus interesses mais diretos no país, estes divididos em dois grupos, relacionados aos objetivos estratégicos e econômicos. Quanto ao primeiro grupo, os objetivos estratégicos, destacam-se dois principais: a) desafiar o domínio norte-americano no que diz respeito a questões da política internacional e evitar a mudança de regime em um país que é seu “cliente”, tendo em vista que uma intervenção estrangeira seguida por uma mudança de regime e distribuição de poder poderia ter implicações perigosas para os interesses e influência russos nos países periféricos da extinta União Soviética e até mesmo junto à parte muçulmana da população russa; b) a manutenção do Porto de Tartus, na Síria, constitui um ponto essencial para as aspirações geopolíticas russas no Mar Mediterrâneo, tendo em vista que a existência de uma base naval russa no referido porto, embora atualmente seja modesta, usada após 1991 para o abastecimento de navios e missões no Golfo de Aden e Mar Mediterrâneo, é importante para as ambições de desempenhar um papel de maior influência no leste do Mediterrâneo e Oriente Médio. Quanto ao segundo grupo, os interesses econômicos, destacam-se: a) proteger o acesso ao petróleo sírio; b) manter a venda de armas para o governo de Assad, que ao longo das últimas décadas constitui um cliente importante da indústria de defesa russa.
Desta forma, tendo em vista a consolidação de seus interesses, o governo russo, desde 2011, expressou sua oposição a qualquer forma de intervenção militar em solo sírio, buscou um diálogo intra-sírio e uma eventual distribuição de poder, opondo-se, assim, à deposição de Assad como um primeiro passo para a transição de poder na Síria.
Com relação ao posicionamento da China, de acordo com SUN (2012) fica evidente que após sua abstenção com relação à Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que permitiu uma atuação mais efetiva no conflito civil instaurado na Líbia, o país percebeu que sua postura – baseada, ao menos no campo retórico, no princípio da não-intervenção – não foi capaz de garantir os interesses chineses no país, historicamente relacionados a acordos para a compra de petróleo e vendas de armas. Além disso, a demora de Pequim para o reconhecimento do Conselho Nacional de Transição líbio, bem como a falta de iniciativa com relação à campanha militar, foram observados pela comunidade internacional como uma espécie de rejeição, por parte do governo chinês, do “movimento democrático” vivido pela Líbia em constante transformação política. Desta forma, o governo chinês alterou seu posicionamento: ao invés de se abster em uma resolução final, o país optou por seguir a sua premissa de país membro do CSNU e utilizou o veto para impedir uma resolução final que permitisse algum tipo de intervenção militar no país do Levante. Através do referido posicionamento, o governo de Pequim observou a possibilidade de salvaguardar seus interesses políticos econômicos, diplomáticos e domésticos: a) o veto em conjunto com a Rússia evitou o possível isolamento de Moscou e demonstrou a intensidade do relacionamento sino-russo, um elemento importante da estratégia de hedging desenvolvida pela China para garantir um aprofundamento das relações econômicas e diplomáticas e ampliar sua possibilidade de influência no sistema internacional; b) o veto foi visto como forma de manter o status quo no Oriente Médio, uma atitude que de, acordo com a visão chinesa, seria melhor para a região do que uma intervenção militar para a retirada do poder de Assad, um governante que possui apoio do Irã; c) evitou a criação de um precedente para legitimar uma intervenção militar como forma de remover um governo soberano em conflito com opositores dito democráticos, apoiados por países ocidentais, tendo em vista a complexa política chinesa no âmbito doméstico para manter a coesão interna.
Além dos fatores descritos, ao longo dos últimos dois anos outro aspecto importante somou-se ao tabuleiro sírio: o fortalecimento do grupo terrorista Estado Islâmico no Iraque e seu posterior avanço em território sírio, sobretudo com a tomada da cidade de Raqqa. O conflito civil sírio, iniciado em 2011 com embates entre a população civil e as forças militares do presidente Assad, ao longo dos anos ampliou-se, enfraqueceu o Leviatã sírio, permitindo assim a fragmentação do poder estatal – visto que o governo já não conseguia mais conter os insurgentes e opositores políticos –, fato este que foi observado e posteriormente “aproveitado” pelo Estado Islâmico, que na referida fragmentação interna buscou a ampliação de seu objetivo inicial de estabelecer um califado.
Lições aprendidas e ameaças
Em 2010 e 2011, primeiramente na Tunísia e depois em países como o Egito, Líbia e Iêmen, milhares de pessoas foram às ruas e em forma de protestos passaram a exigir seus direitos políticos, como o direito de escolher os destinos de seus governos, elegendo os representantes dos mesmos, e em busca de liberdades de expressão, sobretudo a religiosa. Inicialmente, a esperança de alcançar as referidas demandas parecia ser vista com bons olhos por grande parte das populações dos países “atingidos” pela onda de reformas, mas, para europeus e norte-americanos o aparente movimento de transição causava certo estranhamento devido a fatores como o relativo declínio da hegemonia ocidental (Estados Unidos e Europa, de maneira geral) em assuntos políticos da região e, à suspeita acerca das possíveis novas formas de governo (sobretudo a relação entre a religião, sendo a mais debatida o Islã e o poder do Estado) que poderiam questionar os ideais ocidentais de democracia e trazer novos aspectos para a agenda de segurança regional.
A evolução da onda de reformas não foi uniforme: em cada país envolto pelos ideais proferidos pela Primavera Árabe a equação entre o poder estatal, a articulação da sociedade civil e os interesses das potências externas à região trouxeram “resultados” diversos ao cenário político regional. No entanto, algumas lições da Primavera não podem passar despercebidas, são elas:
a revelação de uma importante sociedade civil organizada (como através de sindicatos) e não-organizada que, contrariando a noção maniqueísta e ocidental de que seus países são incompatíveis com noções de democracia e liberdades individuais, lutou para conquistar sua demanda, sobretudo política e social, e espaço;
a necessidade das lideranças políticas de oposição de organizarem os anseios políticos, econômicos e sociais, de modo a gerir de maneira coerente as transformações desejadas, um aspecto importante no êxito da experiência tunisiana de transição, por exemplo, sobretudo através do partido de coalizão Ennahda, e que esteve ausente no Egito quando a oposição, sob a forma da Irmandade Muçulmana e do presidente recém-eleito Mohamed Morsi, não conseguiu conter o ímpeto dos militares que através de um golpe buscaram conter a dita “ameaça” do partido e manter seus privilégios;
os regimes questionados ou até mesmo substituídos ao longo dos últimos anos foram populares ou até mesmo pessoais e buscaram consolidar aspectos como a tradição religiosa (e sua relação com o poder estatal) e nacionalismo, ajustados de maneira a garantir a permanência dos governantes no poder. No entanto, atualmente tais formulações parecem não se encaixar a uma população insatisfeita com aspectos econômicos e sociais, como o alto índice de desemprego junto à população mais jovem, e políticos, como o autoritarismo e a opressão política.
As ameaças à região agora, cerca de cinco anos após a Primavera Árabe, relacionam-se a dois aspectos principais. O primeiro é o temor acerca da formação de novas lideranças autoritárias nos Estados que tiveram seus governantes depostos, sobretudo porque se passou a questionar os caminhos pelos quais os islamitas iriam percorrer em seus governos. Na Tunísia, considerada o berço das revoltas árabes, um dos grandes desafios do governo de transição liderado pela coalizão Ennahda foi a coordenação dos interesses das diversas partes envolvidas nas manifestações, como os islamitas de vertente secular e os movimentos sindicais. Após um período de crises e questionamentos o governo conseguiu conferir certa estabilidade ao seu processo de mudanças rumo a ideais democráticos: a liberdade de expressão pode ser observada, sobretudo na atuação da mídia, que se converteu em um importante canal de debates; a Constituição de 2014 – ao trazer aspectos como a liberdade de crença religiosa, a igualdade de direitos e deveres entre os cidadãos e a inserção de direitos inéditos, como o direito à água, sendo a sua exploração e racionalização um dever do Estado e da sociedade – demonstrou que as forças políticas envolvidas no processo de transição (de ideologias políticas diversas, como islâmicos conservadores e moderados, políticos laicos); e com um novo Parlamento e Presidente legitimamente eleitos. O país mediterrâneo obteve, ao longo dos últimos anos, êxito em deixar de lado seu histórico autoritário, mas vale ressaltar que a insipiente democracia ainda deve desenvolver mecanismos de controle independentes para lidar com as atitudes do governo.
A segunda grande ameaça advém do extremismo de organizações radicais, como é o caso do Estado Islâmico, que passou a atuar de maneira regional, recrutando e treinando homens para combater seus opositores políticos e religiosos de forma a alcançar seu objetivo de estabelecer um califado na região que atualmente compreenderia o Iraque e territórios sunitas na Síria. Assim, será a capacidade dos Estados da região em lidar com suas questões de fragmentação internas (como o ressurgimento do embate entre sunitas e xiitas) e organizar-se para desenvolver uma política de segurança, em um primeiro momento, que determinará o êxito em lidar com as ameaças do extremismo.
A Tunísia, por exemplo, pode ter a sua insipiente democracia ameaçada por aspectos advindos de um Estado fronteiriço – a Líbia – que após a intervenção ocidental em 2011 vive um colapso interno, relacionado à deterioração do poder estatal (agora com a existência de dois governos), à existência de grupos armados que atuam na fronteira entre os países e ao fato de que tunisianos decidiram combater com grupos extremistas, como o Estado Islâmico. Ao longo do ano de 2015 ataques perpetrados em locais turísticos na Tunísia (como o hotel na cidade de Sousse e o museu na capital Túnis) revelaram a fragilidade do país em lidar com as ameaças do extremismo, e desta forma algumas das “respostas” do país foram a intensificação dos esforços do novo governo em lidar com grupos radicais tunisianos, contendo assim os avanços da Al-Qaeda do Magrebe (que atua na fronteira com a Argélia também) e em maio do ano passado o país foi designado pelos Estados Unidos como um aliado importante para o combate do terrorismo, que possui o poder de desestabilizar a já complexa região.
Referências Bibliográficas
BERTRAND, Gilles. Can the Tunisian revolution be reserved?. European Union Institute for Security Studies. Alert Issue, nº26, 2013.
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_________________. Marching in circles: Egypt´s dangerous second transition. Policy Briefing Mddle East/ North Africa, nº35, 2013. Disponível em: <http://www.crisisgroup.org/~/media/Files/Middle%20East%20North%20Africa/North%20Africa/Egypt/b035-marching-in-circles-egypts-dangerous-second-transition.pdf>.Acesso em: 08 jan. 2016
GAUB, Florence. Arab transitions: late departure, destination unknown. European Union Institute for Security Studies. Brief Issue, nº24, 2014.
SUN, Yun. Syria: What China Has Learned From Its Experience. Asia Pacific Bulletim, nº125, 2012.
TRENIN, Dmitri. Russia´s Interests in Syria. Carnegie Moscow Center, Carnegie Endowment for International Peace, 2014.
Imagem: Protesto na Líbia. Fonte: UN Photo/ Iason Foounten
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