Turbulências na integração regional: MERCOSUL à deriva
Por: Carlos Frederico Pereira da Silva Gama[i]

A Nova República vivia crise de proporções inéditas. No semestre do impeachment de Fernando Collor, o Brasil ocupava a presidência temporária do MERCOSUL. Itamar Franco chegou ao Planalto como incógnita: desconhecido da população brasileira, classificou seu próprio ministério de “pífio”. Apesar disso, o MERCOSUL permaneceu sob presidência brasileira até 1993.
Uma década depois, a Argentina vivia outra crise sem precedentes – saques, mortes, queda de 10% no PIB, cinco presidentes na Casa Rosada em duas semanas. O status da Argentina no MERCOSUL, porém, não foi afetado nesse período turbulento.
Entretanto, em 2016 o MERCOSUL suspendeu um estado que assumiria a presidência do bloco. A Venezuela de Nicolás Maduro foi impedida por um movimento concertado dos governos de Brasil, Argentina e Paraguai (com apoio relutante do Uruguai). A suspensão da Venezuela foi justificada pela não-adesão a mecanismos de convergência previstos no Tratado de Assunção, pela grave crise político-econômica do país e por seu déficit democrático (com prisões políticas e restrições à participação da oposição[ii] amplamente condenadas por instituições como a OEA).
Essa suspensão não foi o primeiro grande revés na integração mercosulina. A Venezuela adentrou o bloco num contexto turbulento. Em 2012, outro membro teve sua participação suspensa numa crise política: o Paraguai, após o impeachment-relâmpago de Fernando Lugo.
A decisão do Senado paraguaio provocou repúdio imediato. Lugo também presidia, na ocasião, a UNASUL, instituição que rechaçou o novo governo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou ilegal o impeachment, por violar o direito amplo à defesa. A resposta mais contundente coube ao MERCOSUL, sob a liderança do Brasil. O Paraguai foi suspenso do bloco que fundou. A suspensão permitiu que os demais membros formalizassem a adesão da Venezuela de Hugo Chávez.
A ação brasileira – decisiva para a suspensão do Paraguai – foi motivada por uma grande estratégia. Visava cooptar e neutralizar uma liderança emergente na América Latina[iii]. Após uma década de crescimento calcado no petróleo, a Venezuela chavista projetava influência através da UNASUL e da Aliança Bolivariana para as Américas. Ademais, a política externa “ativa e altiva” de Lula buscou criar um polo alternativo à influência dos Estados Unidos. Para tal, um MERCOSUL robusto incluindo a Venezuela se coadunava com o repúdio a uma área de livre comércio de âmbito continental.
O fracasso da estratégia brasileira de utilizar o MERCOSUL como instrumento de contestação e a decadência econômica da Venezuela após a morte de Chávez conferiram tintas dramáticas aos limites da integração regional. Com a posse de Donald Trump e suas primeiras ações rumo a um bilateralismo punitivo, a tarefa de reerguer o MERCOSUL se torna mais difícil no futuro próximo.
Após atingir o auge no fim do século XX, em 2016 o MERCOSUL representa apenas 1/7 do comércio dos membros[iv]. Menos de 10% da produção industrial é oriunda de cadeias regionais de produção[v]. Com as principais economias da região em recessão, a tendência de declínio se aprofundou.
As suspensões do Paraguai e da Venezuela evidenciam uma característica central do MERCOSUL – a integração se baseia nos governos nacionais. O MERCOSUL adquiriu, nesses termos, uma saliência política desproporcional a seu peso econômico. Carente de sustentação na sociedade civil e grupos de interesses, o processo de integração é muito sensível a solavancos presidenciais. Diferentes concepções de democracia dos membros vem à tona nas situações de crise. Durante a “onda rosa”, governos de matriz conservadora foram rechaçados pelo bloco. Com a mudança da maré política, a permanência da Venezuela chavista no MERCOSUL se tornou inviável.
Nessa integração de baixa intensidade, os impasses se acirram rapidamente e são deixados em banho-maria. A crise venezuelana é apenas o capítulo mais recente da narrativa que inclui a disputa das papeleras entre Argentina e Uruguai e a lenta adesão aos mecanismos previstos nos tratados.
Com suas instituições fragilizadas em rota de colisão, a América Latina se vê numa situação desconfortável 190 anos após o Congresso do Panamá de Simón Bolívar e seis décadas após a ALALC. Os impulsos de integração cederam terreno para a desintegração, num ritmo mais rápido que outra região imersa em crises econômicas e humanitárias – a Europa do Brexit. Ironicamente, a grande esperança do MERCOSUL em futuro próximo é um acordo de comércio e investimentos com a União Europeia, travado há décadas por controvérsias sobre acesso a mercados entre Brasil e Argentina
O MERCOSUL de 2016 desagrada a gregos e troianos. A harmonização econômica permanece distante. Aspirações antigas (uma moeda comum) saíram de pauta. Os impasses prejudicam as expectativas de protagonismo de Brasil e Argentina. Mesmo governos de perfil similar – Michel Temer e Maurício Macri – têm que lidar com transformações no perfil internacional dos seus países. O fim do overprice das commodities não facilitou a parceria regional. Ao invés de unir esforços para aumentar competitividade conjunta, os países disputam acesso a mercados externos e perdem de vista sinergias em suas matrizes produtivas[vi]. A disputa se acirrou nos governos Dilma Rousseff e Cristina Kirchner (culminando no congelamento das negociações com a UE).
Não é surpreendente que acordos flexíveis com países extrabloco se tornem mais atraentes – como as investidas uruguaias na direção da China. O MERCOSUL tornou seus membros mais vulneráveis uns aos outros e menos abertos ao mundo exterior. Um paradoxo incompatível com as expectativas e esforços mobilizados desde a reaproximação iniciada por José Sarney e Raúl Alfonsín em 1985. Sem criatividade e vontade política, a integração regional sofrerá.
[i] Diretor de Assuntos Internacionais e Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)
[ii] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). “Brasil e Venezuela: Democracia em Descompasso”. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/264466 . Acesso em: 23 de Junho de 2016.
[iii] Ibid.
[iv] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). “Diálogos Indiretos: Brasil e Argentina redefinem uma relação em crise”. NEMRI. Disponível em: https://ceresri.wordpress.com/2016/02/19/dialogos-indiretos-brasil-e-argentina-redefinem-uma-relacao-em-crise/ . Acesso em: 19 de Fevereiro de 2016.
[v] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). “Do G-20 à Cúpula dos BRICS: Inflexões da Economia Internacional Após a Crise de 2008”. NEMRI. Disponível em: https://ceresri.wordpress.com/2016/10/18/do-g-20-a-cupula-dos-brics-inflexoes-da-economia-internacional-apos-a-crise-de-2008/ . Acesso em: 18 de Outubro de 2016.
[vi] Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). “Diálogos Indiretos: Brasil e Argentina redefinem uma relação em crise”
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