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Vítimas escolhidas a dedo: genocídios silenciados e a hipocrisia da ordem global

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    CERES
  • 1 de jul.
  • 6 min de leitura

Por Wesley S.T Guerra


No cenário global atual, as tragédias humanas são frequentemente narradas de forma seletiva. Vidas de países “distantes” costumam ficar fora do foco midiático e político, como advertiu a filósofa Judith Butler ao refletir sobre a atribuição desigual da "pranteabilidade" das vítimas. Apenas aqueles que se encaixam no enquadramento dominante (vidas “ocidentais”, cristãs ou estrategicamente úteis) são apresentados como dignos de compaixão, enquanto outras mortes permanecem silenciadas.  


Esse fenômeno foi estudado por pensadores como Hannah Arendt, que mostrou como a burocratização do mal facilita a indiferença, ou Edward Said, que revelou como o discurso orientalista desumaniza os “outros”. Em uma sociedade regida pela necropolítica descrita por Achille Mbembe, as elites globais decidem quais populações podem viver e quais podem morrer. Mahmood Mamdani acrescenta que as categorias impostas pelo colonialismo continuam alimentando conflitos atuais. Nesse contexto, a hipocrisia internacional opera construindo discursos que legitimam algumas vítimas enquanto silenciam outras. 


O caso do Congo Belga ilustra bem essa seletividade histórica. Sob o domínio pessoal do rei Leopoldo II (1885–1908), o Estado Livre do Congo sofreu castigos atrozes para a extração de borracha: trabalho forçado, estupros corretivos, abortos, chicotadas e mutilações (como o corte das mãos) eram rotineiros. A isso se somaram a fome, epidemias de doença do sono e varíola. Como resultado, a população despencou catastroficamente. Hoje se aceita que morreram dezenas de milhões, com estimativas comuns entre 10 e 15 milhões de congoleses mortos nesse período (superando o Holocausto e se transformando no maior genocidio da história da humanidade). No entanto, esses horrores permaneceram por muito tempo ocultos ou minimizados no Ocidente, enquanto a mesma comunidade internacional demonstrava indignação por outros abusos. Só após denúncias de missionários e ativistas (como Edmund Dene Morel) surgiu alguma atenção, mas nem mesmo o Estado belga reconhece que se tratou de um genocídio formal. Este caso colonial, que Mbembe interpretaria como um exemplo extremo de necropolítica (a morte instrumentalizada em benefício econômico), raramente é incluído nos discursos oficiais de direitos humanos embora permaneça ativa e cheia de nuances seletivas geradas pelas grandes economías.  


Outro assassinato em massa de civis foi o genocídio armênio (1915–1923) no Império Otomano. Nesse período, entre 1,5 e 2 milhões de armênios foram deportados e brutalmente assassinados. Contudo, o reconhecimento político ainda é incompleto: países ocidentais evitam nomear o caso como “genocídio” por conveniências diplomáticas. A “ameaça turca” é tratada com condescendência, enquanto a Turquia controla narrativas-chave.  


Arendt alertaria que a banalidade da política faz com que até hoje esses crimes sejam justificados ou silenciados. O mundo, por outro lado, deu grande ressonância ao Holocausto dos judeus europeus, mas muito pouco se falou das otras vítimas das comunidades LGBTQIA+, ciganas, com deficiência, armênias, assírias e gregas que também sofreram com aquele plano sistemático de aniquilação. 


Nos tempos recentes, o padrão se repete. Em Mianmar (antiga Birmânia), o regime militar cometeu em 2017 uma “limpeza étnica” contra os muçulmanos rohingyas. Testemunhas e organizações documentaram assassinatos indiscriminados, estupros e queima de aldeias. A organização Médicos Sem Fronteiras denunciou que ao menos 6.700 rohingyas foram mortos no primeiro mês da ofensiva, incluindo 730 crianças pequenas. Um estudo independente estimou dezenas de milhares de mortos (cifras não oficiais apontam cerca de 25.000) e mais de 700.000 foram forçados a fugir para Bangladesh. Apesar disso, até recentemente, a reação internacional foi escassa: os meios de comunicação raramente destacaram o genocídio em curso. 


Esse contraste na cobertura reflete a observação de Butler: muitas dessas vítimas não eram “visíveis” sob os marcos de reconhecimento global, de modo que seu sofrimento foi percebido como distante ou “justificável” em nome da segurança. 


A traição aos curdos do norte da Síria é outro exemplo dessa falácia. Combatentes curdos aliaram-se aos Estados Unidos na luta contra o ISIS, sofrendo grandes perdas humanas para derrotar o grupo extremista. No entanto, em outubro de 2019, o presidente Donald Trump ordenou a retirada repentina das tropas norte-americanas do norte da Síria, abandonando praticamente seus aliados curdos à própria sorte. 


A Turquia, aliada dos EUA, lançou então uma ofensiva contra eles. Legisladores de ambos os partidos advertiram que esse gesto – “titubear” com os curdos – enviava um “mau sinal” aos aliados dos Estados Unidos no mundo. O caso dos curdos quase não aparece no grande relato geopolítico: países ocidentais falam em proteger soberanias na Ucrânia e condenam potências estrangeiras, mas desviam o olhar quando essa soberania emana de populações sem Estado próprio. 


 Arendt provavelmente destacaria que a “responsabilidade de julgamento” se perdeu quando a política internacional seguiu apetites estratégicos em vez de princípios universais. 


Um exemplo atual e doloroso é Gaza. Desde outubro de 2023, Israel empreendeu uma intensa campanha militar no enclave palestino após ataques do Hamas. O saldo é estarrecedor: segundo dados verificados pela imprensa, ao menos 46.700 palestinos foram assassinados em 15 meses de guerra, dos quais cerca de 18.000 eram crianças. Isso significa que morreu cerca de 1 em cada 50 habitantes de Gaza. Apesar da imensidão do sofrimento – milhões de deslocados, civis sob bombardeio – muitos governos que defendem com veemência a soberania ucraniana evitam classificar a tragédia palestina como o que ela é: uma violação massiva de direitos e um plano genocida de Israel. Nem a indignação nem as sanções chegam ao mesmo nível observado contra outros países.  


Butler nos lembraria como certos marcos de “inteligibilidade” fazem com que essas vidas pareçam menos tangíveis à comunidade internacional, normalizando assim um castigo coletivo que até a ONU qualificou como “violação massiva e sistemática de direitos humanos”. 


O tratamento dado aos refugiados também revela esse duplo padrão. Quando mais de 2 milhões de ucranianos fugiram em poucas semanas, países vizinhos e a União Europeia responderam com ajuda imediata sem precedentes. Cidades europeias improvisaram centros de acolhimento, enquanto a mídia mostrava imagens de crianças refugiadas europeias em braços solidários. Por outro lado, a chegada de quase um milhão de refugiados sírios e dezenas de milhares de africanos em 2015 gerou rejeição e politização, ficando retratado para a posterioridade a foto do cadáver do pequeño Aylan nas praias do Mar Egeo. Apenas alguns países (como a Alemanha e Espanha) abriram as portas, enquanto outros ergueram muros e discursos xenófobos.  


Como notou a imprensa crítica, cidadãos ocidentais de pele branca recebiam uma “solidariedade” que raramente se ofereceu a migrantes negros e árabes. Isso ressoa com o que Said descreveu em Orientalismo: cria-se um “outro” indigno de empatia, reforçando a hipocrisia global. Em suma, o pretexto da proximidade cultural ou da geopolítica útil evidenciou que “algumas vidas importam mais”. 


Paradoxalmente, aqueles que pregam a importância da liberdade e da soberania agem de forma incoerente. Um exemplo é a retórica do presidente Donald Trump. Durante a cúpula da OTAN em 2025, ele criticou ferozmente a Espanha por não aumentar seus gastos militares para 5%, ameaçando impor piores condições comerciais (“vamos fazê-los pagar o dobro” nas negociações). Surpreendentemente, a mesma administração Trump afirma defender a “soberania” da Ucrânia frente à Rússia. 


Essa dissonância é evidente: exige-se comprometimento político e econômico de aliados europeus, enquanto se sancionam outras nações fora do eixo ocidental. 


Outro exemplo que gera grandes discussões, mas no qual se nega o óbvio, é a politização do bloqueio econômico ou o impacto das famosas sanções internacionais sobre determinados países e em sua população civil, como é o caso de Cuba e do Irã, que sofrem com um bloqueio unilateral que impede o acesso a diversos productos e ao desenvolvimento pleno de suas economias, ainda quando a ilha aceitou a proposta de abertura comercial estabelecida pela gestão de Barack Obama, ou quando o Irã abriu suas portas para técnicos das Agências Internacionais e assinou o tratado de não proliferação de armas nucleares (não nunca foi ratificado por Israel), mas, que mesmo assim, colocou o país na lista negra dos EUA, ainda seguindo que seguindo as exigencias da Comunidade Internacional.  


Fato é que a ONU já repudiou o embargo a Cuba – votando anualmente por sua suspensão – e o classificou até como “crime de genocídio” contra o povo cubano. 


No entanto, essa violação prolongada de direitos não recebe sanções similares por parte daqueles que impõem o bloqueio. O contraste mostra mais uma vez que a ordem internacional escolhe de quem “defender a soberania” segundo critérios de conveniência, e não de justiça. 


As reflexões de Butler, Arendt, Said, Mbembe e Mamdani iluminam esse fenômeno. Butler nos convida a reconhecer que a “precariedade” e o luto devem ser estendidos a todas as vidas, não apenas às privilegiadas. Arendt nos adverte que ao estandardizar o mal como algo externo, deixamos de senti-lo como próprio. 


Said denuncia que o discurso ocidental tende a silenciar os oprimidos ao considerá-los subalternos. Mbembe destaca como os sistemas de poder permitem o extermínio de populações colonizadas como algo inerente à ordem “civilizada”. 


Mamdani lembra que essas hierarquias surgiram na era colonial, quando os povos eram classificados arbitrariamente como “aliados” ou “inimigos” para justificar a violência. Se a comunidade global quiser ter credibilidade, precisará aplicar as mesmas condenações e urgências a todos os genocídios e crimes de guerra, sem distinções. 


Em suma, a hipocrisia global sustenta-se em narrativas que inclinam a balança moral. Enquanto uns mortos recebem homenagens e juramentos de justiça, outros padecem no silêncio do esquecimento institucional. Um olhar crítico revela que essa ordem internacional seletiva mantém políticas de sanções, pactos e alianças em função de interesses estratégicos – não de princípios universais. Diante disso, a lição desses autores é clara: a dignidade humana deve ser reivindicada sem exceções.


Só reconhecendo igualmente a dor de todas as vítimas – armênias, rohingyas, curdas, congolesas, palestinas ou ucranianas – será possível romper com a cumplicidade mundial que hoje legitima algumas mortes e silencia outras. 

 

Wesley S.T Guerra
Wesley S.T Guerra

Wesley Sá Teles Guerra

Fundador do CERES e Paradiplomata, atual Gestor do Fundo de Cooperação Triangular Europa, Ámerica Latina e África. Poliglota. Formado Negociações Internacionais pelo CPE (Barcelona), Bacharel Administração pela UCB, Pós graduado Relações Internacionais e Ciências Políticas FESPSP, Mestrado Políticas Sociais e Migrações UDC (Espanha), MBA Marketing Internacional MIB (Massachussetts-EUA), Global MBA ILADEC, Mestrado Smarticities UC (Andorra), Especialização em Gestão de Fundo Europeus. Doutorando Sociologia UNED (Espanha). Especialista Paradiplomacia, Desenvolvimento Econômico e Cidades Inteligentes. Autor livro Cadernos de Paradiplomacia, Paradiplomacy Reviews e Manual de sobrevivência das Relações Internacionais. Comentarista convidado da CBN Recife e finalista do prêmio ABANCA para investigação acadêmica. Atuou como Paradiplomata do Governo da Catalunha durante o "procés" processo de autodeterminação da região da Catalunha (Espanha), também foi membro do IGADI, Instituto Galego de Análise e Documentação Internacional e coordenador do OGALUS, Observatório Galego da Lusofonia, sendo o responsável pelo estudo Relações entre Galicia e Brasil. Assim mesmo foi o primeiro brasileiro a se candidatar em uma eleição na cidade de Ourense (Espanha). Foi editor executivo da revista ELA do IAPSS e é membro de diversas instituições tais como CEDEPEM, ECP, Smartcities Council e REPIT. Atualmente é gestor do fundo de cooperação triangular Europa, América Latina e África.



Fontes 

 Judith Butler. Frames of War: When Is Life Grievable?, Verso, 2009. • Hannah Arendt. Responsibility and Judgment, Schocken Books, 2003. • Edward Said. Orientalism, Pantheon Books, 1978. • Achille Mbembe. Necropolitics, Duke University Press, 2019. • Mahmood Mamdani. When Victims Become Killers, Princeton University Press, 2001. • Hochschild, Adam. King Leopold's Ghost, Houghton Mifflin, 2006. • Médicos Sem Fronteiras. Relatório sobre a ofensiva contra os rohingyas, 2017. • Assembleia Geral das Nações Unidas. Resolução sobre o bloqueio a Cuba, 2024. • Al Jazeera, AJLabs. “O custo humano da guerra de Israel contra Gaza – em números”, janeiro de 2025. • Fox Business. Declarações de Trump sobre os gastos militares da Espanha, junho de 2025. • Foreign Policy. “A hipocrisia da Europa diante dos refugiados”, março de 2022. • The Guardian. “6.700 muçulmanos rohingyas mortos em um mês em Mianmar”, dezembro de 2017. • Wikipédia. “Genocídio armênio”, “Genocídio congolês” e “Crise dos refugiados sírios na Europa”. • ACNUR (UNHCR). Dados sobre deslocados ucranianos, 2022–2024. • International Crisis Group. Relatórios sobre a situação dos curdos na Síria, 2019. 

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