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Arte e Cultura na Era dos Memes: Estética, Participação e Transformações Digitais

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    CERES
  • há 5 horas
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O termo “meme” foi introduzido pelo biólogo Richard Dawkins no seu bestseller O Gene Egoísta (1976), sendo apresentado como o análogo cultural do gene, uma unidade mínima de informação que se replica de cérebro em cérebro, ou entre suportes onde a informação é armazenada, como livros, canções ou imagens. Este artigo analisa os memes digitais como fenómenos culturais e expressivos contemporâneos, situando-os no contexto da arte e da cultura digital, como formas legítimas de produção simbólica na era digital.


Etimologicamente, o termo deriva do grego “mimema”, que significa “imitação” e está na origem de palavras como mimese, lema ou teorema. Dawkins reduziu essa forma a meme, por aférese, com o intuito de criar um paralelismo fonético e conceptual com as palavras gene e memory (memória). Embora a forma portuguesa “mimema” fosse linguística e morfologicamente aceitável, o termo meme, tal como cunhado por Dawkins, foi adoptado na tradução portuguesa feita por Rejane Rubino, e assim se consolidou no uso académico e popular.


Quando usado num contexto mais coloquial, o termo “meme” refere-se frequentemente apenas à transmissão informal de informação de uma mente para outra, o que o aproxima da ideia de que a linguagem e a cultura funcionam como vírus (uma analogia amplamente explorada por autores pós-modernos). No entanto, esta concepção mais genérica diverge do propósito original de Dawkins, cuja intenção era conceptualizar os memes como replicadores culturais estruturados, capazes de gerar padrões de comportamento e perpetuar normas sociais. 


No entender de Dawkins, o meme constitui uma unidade de evolução cultural, capaz de se autopropagar e influenciar comportamentos. Podem assumir a forma de ideias ou partes de ideias, sons, habilidades, valores estéticos ou morais, qualquer elemento que possa ser aprendido facilmente e transmitido como unidade autónoma. A este campo de estudo denomina-se memética, disciplina que investiga os modelos evolutivos da transferência cultural de informação.


Com o advento da internet, essa noção foi reinterpretada por autores como Shifman (2013), que define os memes digitais como “unidades culturais reproduzidas via internet, frequentemente com variações deliberadas, que partilham características formais, conteúdos e/ou estéticas participativas”.


Como escreveu Ralph Waldo Emerson em seu ensaio "Self-Reliance": “A chave de todo ser humano é o seu pensamento. Resistente e desafiante aos olhares, tem oculto um estandarte que obedece, que é a ideia ante a qual todos os seus factos são interpretados. O ser humano pode somente ser reformado mostrando-lhe uma ideia nova que supere a antiga e traga comandos próprios” (Emerson, 1841/1993, p. 59).


Participação Colectiva e Cultura de Convergência

A digitalização da vida quotidiana transformou radicalmente as formas de produção, circulação e recepção de conteúdos culturais. Dentre os muitos fenómenos emergentes deste contexto, os memes digitais destacam-se como uma linguagem própria, expressiva e profundamente simbólica. 


Inicialmente encarados como entretenimento superficial, os memes assumem hoje funções complexas, envolvendo crítica social, identidade colectiva e até mesmo apropriações artísticas. Dada a sua força comunicativa e estética, impõe-se uma reflexão sobre o papel dos memes na reconfiguração das fronteiras entre arte e cultura popular.


Do ponto de vista artístico, os memes incorporam elementos visuais e narrativos que remetem a movimentos como o dadaísmo, a arte pop e a arte conceptual. A sua estrutura fragmentada, o uso de colagem, a apropriação de imagens pré-existentes e o carácter efémero fazem com que se alinhem com as práticas contemporâneas de “remistura” cultural (Lessig, 2008). Adicionalmente, os memes oferecem uma estética propositadamente simplificada, acessível e irónica, constituindo aquilo que alguns autores designam por “estética do amadorismo digital” (Nissenbaum & Shifman, 2017).


A produção e difusão de memes inscreve-se no contexto da cultura participativa, conceito desenvolvido por Henry Jenkins (2009), segundo o qual os consumidores tornam-se também produtores de conteúdos. Esta mudança altera profundamente a forma como a arte e a cultura são produzidas: os memes não possuem autoria definida, são modificados em cadeia e moldam-se consoante o imaginário colectivo. Esta lógica desafia o conceito moderno de autoria artística e promove uma democratização do fazer cultural, descentralizando o poder criativo.


Memes como Ferramentas de Crític, Engajamento Político e Inserção no Espaço Artístico

Argumenta-se que os memes não apenas reflectem valores sociais, políticos e estéticos da sociedade actual, mas também contribuem para transformações na noção tradicional de arte, autoria e crítica cultural. Através de uma revisão teórica e análise sociocultural. 


Segundo Milner (2016), os memes são frequentemente encarados como conteúdos superficiais ou irrelevantes, reduzidos a formas de expressão ligeiras e despretensiosas. Esta percepção, contudo, resulta de uma visão limitada e, por vezes, equivocada, que os associa exclusivamente a uma “cultura inútil” ou ao chamado “besteirol”. 


Tal visão deve-se, em parte, à escassez de estudos que analisem de forma crítica e sistemática o carácter multifacetado e polissémico dos memes, sobretudo no que respeita aos seus usos e apropriações em contextos com forte carga política e social.


Um exemplo claro desta dimensão política dos memes ocorreu durante as Eleições Gerais de Angola em 2022, onde estes desempenharam um papel expressivo na comunicação política informal. Nas redes sociais, circularam milhares de imagens, vídeos curtos e montagens satíricas com o slogan ou campanha “Em 2022 Vais Gostar”.


Em muitos casos, os memes funcionaram como formas de contestação popular, tornando-se instrumentos de crítica política e de mobilização simbólica entre os jovens, sobretudo em plataformas como o Facebook e o WhatsApp, que têm ampla penetração no país. O humor foi utilizado como linguagem de resistência, permitindo a veiculação de mensagens críticas de forma rápida, viral e relativamente segura num ambiente digital muitas vezes vigiado.


Este exemplo evidencia como os memes não são meros artefactos do entretenimento, mas podem assumir um papel ativo na construção de narrativas políticas, funcionando como termómetros sociais e veículos de expressão colectiva em contextos de elevada tensão política.


Os memes funcionam igualmente como dispositivos de crítica social e política. A sua linguagem simples e imediata permite mobilizar discursos complexos de forma acessível, tornando-os ferramentas eficazes de resistência simbólica (Milner, 2016). Em contextos de crise, manifestações populares ou períodos eleitorais, os memes operam como formas de contra-narrativa que escapam às estruturas convencionais dos meios de comunicação. Esta função aproxima os memes de práticas artísticas engajadas do século XX, como o graffiti, os cartazes políticos ou as performances públicas.


Nos últimos anos, museus e galerias começaram a incorporar memes em exposições, reconhecendo o seu valor enquanto manifestações artísticas. Eventos como “Meme Culture”, na London Gallery West, ou projectos de arte digital promovidos pelo New Museum (Nova Iorque), demonstram o crescente interesse institucional por esta forma de expressão. A crítica permanece, no entanto, dividida. Serão os memes uma nova arte popular, ou reflexo da banalização da arte na era digital? Como sugere Groys (2008), na sociedade do excesso de imagens, o desafio da arte é precisamente captar a atenção – tarefa na qual os memes se destacam.


Nesta senda, a análise dos memes digitais permite compreender de forma mais alargada a complexidade da cultura contemporânea e o modo como as práticas comunicacionais evoluem na era da hiperconectividade. Longe de constituírem apenas expressões ligeiras ou conteúdos descartáveis, os memes assumem um papel cada vez mais relevante como veículos de produção simbólica, crítica política e intervenção cultural.


Desde a sua conceptualização original por Richard Dawkins como unidades de replicação cultural, os memes sofreram uma profunda transformação semântica e funcional. No contexto digital, tornaram-se instrumentos centrais da cultura participativa (Jenkins, 2009), desafiando conceitos como autoria, originalidade e legitimidade artística. A sua apropriação por movimentos sociais, coletivos juvenis e espaços institucionais demonstra que os memes não só refletem dinâmicas sociais, como também intervêm activamente na construção do discurso público.


O caso das Eleições Gerais de Angola de 2022 ilustra de forma exemplar o potencial dos memes enquanto ferramentas de crítica política e engajamento cívico. Utilizados como linguagem de resistência e expressão coletiva, os memes permitiram reconfigurar o espaço público digital, democratizando formas de discurso que antes estavam confinadas aos media tradicionais.


Neste sentido, é fundamental que a academia, as instituições culturais e os investigadores das ciências sociais reconheçam os memes como objectos dignos de análise séria e sistemática. A sua estética híbrida, a lógica da remistura e o seu carácter efémero colocam-nos no centro do debate sobre os novos paradigmas da comunicação, da arte e da cultura. Se, como afirmou Emerson, "o ser humano só pode ser reformado por uma ideia nova que supere a antiga", então talvez os memes representem, na sua simplicidade e irreverência, os portadores dessas ideias transformadoras no século XXI


Gomes Dias
Gomes Dias

Gomes Dias, angolano residente em Angola, na província de Luanda. Formado em Comunicação Social, pela Universidade Agostinho Neto (UAN); Pesquisador do Centro de Estudo de Relações Internacionais CERES; Secretário-Adjunto da Assembleia, da Juventude Unida dos País de Língua Portuguesa (JUPLP), e membro associado júnior da Associação Angolana dos Profissionais de Comunicação Institucional (AAPCI).

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Referência Bibliográfica 

Chauvin, J. P. (2021). Mitocracia. Jornal da USP. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. Recuperado de https://www.eca.usp.br/acervo/producao-academica/003112495.pdf

Dawkins, R. (1976). O Gene Egoísta (tradução de Jorge Côrte-Real). Lisboa: Gradiva.

Emerson, R. W. (1993). Self-Reliance and Other Essays (original publicado em 1841). Mineola, NY: Dover Publications.

Lessig, L. (2008). Remix: Fazendo a arte e o comércio prosperarem na economia híbrida. Penguin Press.

Nissenbaum, A., & Shifman, L. (2017). Meme templates as expressive repertoires in a global digital culture. Social Media + Society, 3(2), 1–10.

Shifman, L. (2013). Memes in Digital Culture. MIT Press.

Milner, R. M. (2016). The World Made Meme: Public Conversations and Participatory Media. MIT Press.

Johnson, A. G. (1997). Dicionário de Sociologia: Guia Prática da Linguagem Sociológica. Rio de Janeiro, Brasil: Jorge Zahar Ed.

Halfeld, P. A. (2013). Produção do Humor na Rede Social Facebook. Revista Soletras, Rio de Janeiro, n. 26.

Jenkins, H.; et al. (2009). If it doens’t spread, it’s dead. Massachusetts: Convergence Culture Consortium.

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