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60 anos do Golpe e quase tivemos outro


Escrevi no final de 2022 o artigo, “Brasil 2023 ou Brasil 1961?”, buscando uma correlação, de literatura ampla e fascinante, sobre as realidades sócio econômicas e políticas que o nosso país poderia enfrentar em 2023, assim como enfrentou em 1961, quando historicamente dá-se início ao “plano do golpe de 1964”. Há pouco mais de 1 ano meu objetivo não era focar essencialmente em uma tentativa golpista, ou até mesmo em um nova escalada para tal, e sim apresentar que as condições do país iriam desafiar o governo e a oposição - na época a depender de quem se elegesse - a estabelecerem novos limites de debate e atuação.


Para o bem da jovem e frágil democracia brasileira, Lula venceu um sistema montado para derrotá-lo. Esse utilizou não somente a “máquina pública” no seu sentido mais clássico, ou seja com o poder econômico, mas em um verdadeiro esquema estratégico que impregnou os tentáculos do poder público federal nos mais diversos meios. Desde investigações paralelas ilegais com o uso de softwares pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) até a ordem para que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) montasse bloqueios, através de mapeamento de votos de cidades, focados em dificultar a ida de eleitores do nordeste para votarem no segundo turno - a saber, foram mais de 650 bloqueios da PRF em todo o país, sendo a maioria absoluta deles somente no nordeste e em cidades onde Lula teve no mínimo 75% dos votos válidos no primeiro turno.


Durante os 4 anos de mandato do ex presidente Jair Bolsonaro - poderíamos juntar com todos os seus outros 30 anos de vida pública - os discursos e a sede pelo poder sempre foi tamanha, que a ideia de um governo autoritário, totalitário, ditatorial e até mesmo de um golpe de estado foi frequente. E com isso retorno ao meu artigo citado acima, mas focado na possibilidade real de uma escalada golpista, mostrado pelas investigações da Polícia Federal, com documentos, estratégias, comunicações, convocações entre outras.


A estrutura golpista.


É preciso muito mais do que anseios golpistas, motivações totalitárias ou personalidades fascistas para que uma mudança do regime democrático em uma ditadura tenha de fato sucesso. O Phd Saulo Goulart relembra que é fundamental que haja uma conjunção de fatores, de forças, sociais e políticas, para que o processo consiga iniciar uma revolução golpista, tal como o próprio Goulart afirma: “antes de qualquer golpe há uma revolução, e para que um golpe aconteça é preciso uma revolução”.


Esse ano de 2024, o golpe cívico militar - as atrocidades e a governança política foi militar, mas a estrutura social foi civil também - completa 60 anos, em 31 de Março, ainda que essa não seja sua data real, mas adotada como simbolismo histórico.


Existem correntes teóricas que defendem que as ideias golpistas, por parte de militares, grupos da sociedade civil (religiosos, conservadores, aristocratas, empresários), mídia e forças políticas, já estavam presentes no início da década de 1950 e que pressionavam, com apoio dos Estados Unidos, Getúlio Vargas, que por sua vez, viu na radical decisão de tirar a própria vida, a criação de uma barreira sociológica - criando uma corrente de lamento que dificultaria apoios populares - para atrasar um golpe de estado. É interessante pensarmos nessa ideia, uma vez que esse governo de Vargas era profundamente diferente do seu primeiro, de viés golpista e apoiado pelas mesmas forças que em 1954 queriam derrubá-lo.


Por conta das mudanças sociais e trabalhistas iniciadas por Getúlio e aprofundadas por Jânio Quadros e João Goulart, principalmente quanto às reformas de base com foco na reforma agrária, a oposição golpista ganhou força e principalmente apoio internacional, uma vez que as ideologias defendidas e parte dos discursos eram considerados “comunistas demais”, o que no período de Guerra Fria se tornou um alvo certeiro para as operações dos Estados Unidos na América Latina.


Essa oposição golpista, liderada por militares governistas e apoiada por grupos da sociedade civil, empresários, latifundiários, grupos religiosos e pela mídia, dá início a uma escalada ainda em 1961 e contorce o governo até tomar o poder em 31 de Março de 1964 (na verdade no dia 02 de Abril de 1964).


Sendo assim, a estrutura para um golpe de estado necessita ao menos de algum apoio popular e midiático e fundamentalmente de um braço armado, geralmente as forças armadas do país, pontos esses que tanto em 1964 quanto em 2022 o governo em exercício tinha.


Algumas diferenças centrais depois de quase 60 anos são cruciais para compreendermos as novas forças políticas do país, como elas dialogam e principalmente atuam, para assim encontrarmos soluções e maneiras de constrangê-las evitando novas tentativas de ruptura do regime democrático.


O militarismo presidencial de 1964 X o presidente militarista de 2022.


Talvez a maior diferença na política institucional brasileira entre esses dois períodos, um de golpe realizado (1964) e o outro de uma tentativa clara, com estratégia e plano de ruptura do regime democrático (2022), seja a origem do grito golpista. Se em 1964 os militares já ocupavam o governo e a política de forma intensa há muito tempo, em 2022 o brado autoritário veio do próprio chefe do executivo. O plano recente era de impedir que um resultado eleitoral contrário aos interesses governistas fosse em frente, e que o rito democrático normal fosse conduzido, em poucas palavras impedir Lula de assumir e se legitimar como presidente eleito democraticamente.


Utilizando de toda a força da máquina pública, o ex presidente e seus aliados, espionaram, investigaram, atacaram e desmoralizam seus inimigos (políticos ou não); atuou junto a lideranças religiosas evangélicas de massa para ampliar e fazer ecoar seus falsos discursos sobre defesa da liberdade, ser um perseguido, espalhando notícias falsas sobre seu adversário político, em busca de gerar uma boa parcela de apoiadores amedrontados e eleitores pelo medo. Aliado a toda essa estrutura, Bolsonaro ainda tinha mídias favoritas, como canais de tv e grande perfis em redes sociais, juntamente com “cabos eleitorais” famosos que endossaram tais discursos. Assim, em 2022, o chefe das forças armadas já tinha em suas mãos condições importantes para conclamar os ideais e promover a escalada golpista, e o fez.


Como afirmam Levitsky e Ziblat, no mundo pós guerra fria as democracias são destruídas por dentro do próprio regime, não veremos mais bombas explodindo um palácio presidencial como no 11 de Setembro no Chile de Salvador Allende. De fato essa é uma diferença crucial que a política e todos nós precisamos vigiar, os próprios atores políticos são os responsáveis pela derrubada de um regime democrático e é através deles que as forças autoritárias fascistas irão se entranhar. Da mesma forma que somente através da política institucional, democrática, que iremos identificar esses discursos e tendências golpistas e conseguir impedir tais aglomerações.


Porque não deu certo?


Acredito que temos duas análises que se conectam em algum momento: a primeira e talvez mais determinante, é que a conjuntura internacional de em 1964 era outra, o mundo vivia a Guerra Fria e poucos anos após a derrota dos Estados Unidos nas tentativas de impedir a revolução cubana, diminuindo sua “área de influência” na região. Em 2022 a realidade era completamente diferente, apesar do discurso do “fantasma comunista” (criado pelos Estados Unidos para atuarem na região há 60 anos atrás) ainda estar sendo muito utilizado como estratégia de formar eleitores pelo medo. Hoje a Casa Branca não possui mais essa política externa, muito menos está interessada em apoiar um golpe de estado, principalmente em um parceiro estratégico como o Brasil. E convenhamos, se grande parte dos analistas, jornalistas, interlocutores, políticos já tinham fortes desconfianças, para não dizer quase certeza, claramente que a CIA já estava bem informada e o já havia alertado que não apoiaria e condenaria um golpe de estado.


Outra abordagem está na organização político cultural da cúpula golpista. Entendo que houve um receio muito grande em “dar o último passo”, em de fato decretar um estado de sítio, organizar as forças especiais para prender políticos e fechar o congresso. Em vários momentos, revelados pelas investigações da PF, vemos que já existiam as estratégias, documentos, alvos, momentos, os apoios militares estavam articulados, faltou muito pouco, podemos pensar que faltou coragem para assinar, decretar e ir adiante, faltou o famoso “soco na mesa” como fez Collor quando deu calote no Fundo Monetário Internacional (FMI).


A disputa pelos espólios


Temos acompanhado, sem nenhuma surpresa, toda a trama montada para o golpe de estado, e agora vemos o ex presidente buscando saídas para se inocentar diante de tamanhas acusações com provas materiais. O ato na Av. Paulista em São Paulo no domingo dia 25 de Fevereiro, nos permite realizar algumas análises muito importantes para o futuro próximo de nossa democracia.


De acordo com a contagem da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 185 mil pessoas (números divergem, a Secretária de Segurança Pública de São Paulo fala em 600 mil pessoas), estiveram no ato em defesa de Bolsonaro, foi uma demonstração de força política e deve ser respeitada. A liderança ideológica e personificada é real, o bolsonarismo representa a extrema direita brasileira, que atua com grande apoio no meio cristão evangélico e sociedade conservadora. Os números da última eleição não podem ser esquecidos, quase 50% dos eleitores.


Outra abordagem nos permite observar os discursos e boa parte dos analistas concordam que foi um roteiro mais defensivo, controlado, porém com muitas falas de quem está com medo do avanço das investigações. A mudança clara de postura em relação aos seus discursos quando era presidente mostra que existe um pensamento para além da inelegibilidade.


Por fim temos que destacar um ponto pouco falado, as mais de 40 personagens políticas que estiveram presentes no ato, com destaque para: os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos); de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo); de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil); e de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL); o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto; o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI); os deputados federais Gustavo Gayer (PL-GO), Nikolas Ferreira (PL-MG) e Carla Zambelli (PL-SP); o senador Magno Malta (PL-ES); o ex-deputado federal João Roma (PL);


Em primeira análise é claro que todos, ou pelo menos a grande maioria, está buscando os famosos espólios de batalha, ou seja, ganhar eleitores, ou força eleitoral “colando” sua imagem na do ex presidente. No entanto, o ponto central para a democracia brasileira é sabermos que hoje essas personagens podem ter defendido em ato público um golpista.


Anistia, problema ou solução?


Se você chegou até aqui, já te agradeço, e se busca uma resposta simples e rápida te digo, anistia é um problema. Um dos pontos chave na fala de Bolsonaro foi um pedido de anistia para os “coitados” que invadiram as sedes dos três poderes no dia 08 de Janeiro de 2023, e na sequência a frase “vamos deixar o passado para trás”, o que seria um pedido de perdão para si.


Um dos grandes trunfos do governo Dilma foi a implantação da Comissão da Verdade, que apesar de não ter conseguido atingir todos seus objetivos, foi muito importante para muitas famílias e para completar muitas histórias vividas durante os 20 anos de ditadura militar no Brasil. Ela se conecta com o grande problema sócio político cultural que temos, nós não estamos acostumados a resolver a nossa história.


Tradicionalmente, e não somente da ditadura de 1964 a 1984, mas também de outros períodos, somos um povo que tende ao perdão, ou a empurrar a história “para baixo do tapete”, o que nos deixa com lacunas na formação cultural do indivíduo brasileiro como identidade de si.


A anistia é sim uminstrumento jurídico importante, porém quando falamos de crimes de guerra, genocídio, golpes de estado, ditaduras militares, tortura, em linhas gerais, quando há um atentado contra o princípio fundamental do Estado nação, sua população, não deve existir espaço para anistia. O perdão para alguém ou grupos que tramaram, conspiraram, assassinaram, torturaram, seus próprios nacionais, é um erro histórico irreparável.


O Brasil promoveu a completa anistia dos que atuaram durante a ditadura militar, o que do ponto de vista cultural, político e histórico, não permite a exata noção de culpabilidade pelos terríveis crimes cometidos, desmerece a luta política daqueles que enfrentaram o regime e cria um vício, uma brecha para que novos rompantes autoritários surjam.


Não podemos, nem devemos promover anistia aqueles que tramam e conspiram contra a democracia, o Estado nação e seus nacionais, da mesma forma que devemos permanecer vigilantes para a crescente atuação da extrema direita, uma realidade política no Brasil. Constranger a ascensão do fascismo, passa necessariamente por culpabilizar e julgar aqueles que criminosamente atentaram contra o equilíbrio democrático.





Bernardo Monteiro é graduado em Relações Internacionais pela UNESA e também pós graduado (MBA) em Relações Internacionais pela FGV-RJ; autor do livro: Para uma Estabilidade Democrática, possui formação como analista político internacional; atua como escritor, analista político, pesquisador e divulgador científico sobre: política brasileira, história da democracia, democracias ocidentais e sociopolítica;

foi pesquisador associado do Laboratório de Simulações e Cenários da Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil (LSC-EGN/MB); foi professor convidado para a disciplina Análise de Política Internacional para a graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ; foi professor de Análise de Política Externa para o I Congresso de Relações Internacionais (I CONRI); foi palestrante e professor sobre política brasileira, análise política, geopolítica, democracias e cenários prospectivos.


Referências Bibliográficas:






LEVITSKY, Steven; ZIBLAT, Daniel. Como as Democracias Morrem. São Paulo. Zahar. 2018.


PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo. UNIVESP TV. 2014


GALEANO, Eduardo. Veias abertas da América Latina. São Paulo. Paz e Terra. 1979


HOBSBAWN, Eric. Viva la revolución - A era das utopias na América Latina. Companhia das Letras. 2017


GHIRALDELLI JR, Paulo. “República Brasileira. De Deodoro a Bolsonaro". CEFA Editorial; 2ª edição (21 outubro 2021)


GOULART, Saulo. “Uma História do Brasil desde a República”. Casa do Saber.Setembro, 2022.


Podcast “Ao Ponto, Ep. O cerco a Bolsonaro e a prisão de militares na trama golpista”


Podcast “Ao Ponto, Ep.Bolsonaro: o ato na Av. Paulista e o pedido de anistia”



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