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O Complexo de Deus e a Construção Ditatorial: O Caso do “Último Rei da Escócia”, Idi Amin Dada

  • Foto do escritor: CERES
    CERES
  • 24 de abr.
  • 6 min de leitura

Do ponto de vista psicológico, o complexo de Deus pode ser compreendido como uma manifestação extrema do narcisismo patológico, associado a traços de megalomania e delírios de grandeza. A literatura psicanalítica sugere que tais características se intensificam em contextos de impunidade, adulação e poder absoluto. Em regimes autoritários, a ausência de freios institucionais e a sistemática eliminação de adversários permitem que o ego do ditador se expanda até dominar a lógica do Estado. 


Este artigo explora a aplicação desse fenómeno no contexto de regimes autoritários, destacando o caso de Idi Amin Dada, ditador de Uganda entre 1971 e 1979. O regime de Amin exemplifica como o complexo de Deus pode se manifestar no culto à personalidade, na violência de Estado e no messianismo político. A análise do seu governo oferece uma perspectiva sobre como a psicologia de um líder pode moldar a dinâmica política e social de um país, refletindo as tensões entre poder, ilusão e autoritarismo.


No seu livro “Complexo de Deus”, Richter descreve a civilização ocidental moderna como marcada por uma reivindicação de uma omnipotência egocéntrica e quase divina, que ignora os limites da condição humana. Essa ilusão de grandeza, no entanto, é uma fuga frágil diante das crises que nos assolam.


Os sentimentos de impotência, baixa autoestima ou problemas não resolvidos da infância podem resultar na superestimação das próprias capacidades, criando assim a distorção psicológica do chamado “complexo de Deus”. Este fenómeno leva ao dogmatismo das opiniões e à ilusão de infalibilidade, como se o próprio ponto de vista fosse o único correcto. Essa postura impede o desenvolvimento do autoconhecimento e da autocompreensão. Uma convivência equilibrada com os outros promove uma avaliação realista de nossas capacidades e limites, em contraste com uma identidade baseada em projeções idealizadas de si mesmo.


Em tempos de guerra, esse complexo intensifica-se, fomentando uma mentalidade maniqueísta e dicotómica, em que tudo é reduzido à alternativa “bem” ou “mal”.


O estudo do comportamento ditatorial revela, em muitos casos, a emergência de padrões psicológicos patológicos que extrapolam a mera ambição pelo poder. Entre esses padrões, destaca-se o chamado “complexo de Deus”, uma condição caracterizada pela ilusão de onipotência, infalibilidade e a autoatribuição de um estatuto quase divino. Tal fenómeno não apenas estrutura o imaginário do próprio líder, como se reflete na construção simbólica do Estado e na cultura política que o sustenta. O caso de Idi Amin Dada, ditador ugandês entre 1971 e 1979, é paradigmático nesse contexto, pois reúne aspectos de culto à personalidade, violência de Estado e messianismo político.


Idi Amin emergiu do seio das Forças Armadas coloniais britânicas, onde já se destacava pela sua agressividade e lealdade operacional. Com o apoio tácito do Reino Unido e de Israel, orquestrou um golpe de Estado em 1971, depôs Milton Obote e instaurou um regime militar brutal. Rapidamente, construiu uma narrativa de libertador nacional e defensor da “africanidade pura”, ao passo que eliminava rivais, reprimia etnias consideradas hostis e instrumentalizava o exército como base do seu poder.


Em 1971, após liderar um golpe de Estado que depôs Milton Obote, Idi Amin instaurou um regime autocrático marcado por violações sistemáticas dos direitos humanos, que perdurou por cerca de oito anos. Demonstrando traços evidentes de megalomania, o ditador ordenou a expulsão de aproximadamente 40 mil asiáticos, maioritariamente descendentes de imigrantes indianos oriundos do antigo Império Britânico, sob a alegação de ter recebido uma revelação divina que o incumbia de transformar Uganda numa nação exclusivamente negra.


A decisão de expulsar sumariamente 40 mil asiáticos, sob a justificativa de que “Deus lhe havia ordenado” transformar o país numa nação de homens negros, revela um comportamento típico de líderes acometidos pelo complexo de Deus. Tal complexo implica uma autopercepção inflada, quase divina, na qual o governante acredita estar acima da lei, da moral comum e até mesmo da racionalidade política.


No caso de Idi Amin, esta atitude megalomaníaca não se restringe ao campo simbólico, mas orienta decisões de Estado com consequências humanas, económicas e diplomáticas graves. Ele apropria-se da linguagem religiosa e do misticismo para legitimar políticas de exclusão étnica e para apresentar-se como instrumento directo da vontade divina. Trata-se de um processo de sacralização do poder, em que a vontade do ditador é confundida com desígnios espirituais, reforçando o culto à personalidade e suprimindo qualquer possibilidade de oposição racional ou institucional.


 Idi Amin Dada representa um dos exemplos mais radicais de como o complexo de Deus pode ultrapassar os domínios da megalomania simbólica e atingir os extremos do grotesco e do patológico. A sua autodeclaração como “Rei da Escócia”, bem como suas propostas insólitas, como transferir a sede da ONU para Kampala, refletem um delírio de grandeza institucionalizado, onde a realidade política é constantemente moldada pela imaginação delirante do líder.


O seu comportamento errático e autorreferente também se manifestava na gestão do quotidiano nacional: proibiu minissaias e hippies, utilizando o poder do Estado para impor uma moral pessoal e arbitrária, vestida de “ordem nacional”. Mais do que excentricidade, tais atos revelam um desejo de controle absoluto sobre corpo, conduta e estética social, como se a nação fosse uma extensão simbólica do seu próprio ego.


No plano da repressão, Idi Amin atingiu níveis alarmantes de violência: estima-se que mais de 100 mil pessoas tenham sido mortas durante o seu governo, muitas delas sem qualquer processo legal. Acusado de manter cabeças decepadas em frigoríficos, de esquartejar a sua esposa e até de alimentar crocodilos com cadáveres, construiu uma atmosfera de terror sustentada por um sistema de punições teatrais e ritualizadas, que reafirmavam o seu poder pela via do medo e do espetáculo macabro.


Os rumores de canibalismo, embora nunca confirmados oficialmente, alimentavam ainda mais a aura mitológica que o cercava. Paradoxalmente, mesmo com tal reputação internacional, foi recebido em 1975 pelo Papa João Paulo VI, enquanto presidia a Organização da Unidade Africana, uma ironia geopolítica que mostra como ditadores com delírios de divindade podem, ainda assim, exercer protagonismo em arenas diplomáticas globais.


A construção simbólica de Idi Amin como figura messiânica é ilustrativa do complexo de Deus. Entre os títulos que acumulou figuram: “Sua Excelência, Presidente Vitalício, Marechal de Campo Doutor Idi Amin, Cruz da Vitória, Senhor de Todas as Bestas da Terra e dos Peixes do Mar e Conquistador do Império Britânico na África em Geral e em Uganda em Particular”. A retórica adoptada ia além do absurdo, tratava-se de uma estratégia de legitimação baseada na sacralização do poder, promovida por meio de propaganda, censura e eliminação física de opositores.


Ao longo de seu governo, Idi Amin consolidou um modelo de exercício do poder em que a estrutura institucional do Estado foi corroída e substituída por uma lógica de fidelidade pessoal e coerção permanente. O sistema decisório era volátil, regido pelas emoções, paranoias e caprichos do líder. Não havia espaço para dissenso, uma vez que toda divergência era entendida como uma ofensa à sua “autoridade sagrada”.


A trajectória de Idi Amin Dada evidencia como o complexo de Deus, quando associado ao poder político absoluto, pode degenerar num modelo de governança autorreferente, autocrático e destrutivo. O caso de Amin não é isolado na história, mas sua expressividade simbólica o torna um exemplo notável da transformação do Estado em espelho narcísico de um indivíduo. Compreender tais dinâmicas é fundamental para analisar regimes contemporâneos que exibem sinais de personalismo exacerbado, manipulação simbólica e a tendência à sacralização do poder.


A análise do complexo de Deus à luz do governo de Idi Amin Dada revela como a psicologia individual pode transformar-se num motor destrutivo quando associada ao poder político absoluto. O delírio de onipotência, a autopercepção messiânica e a rejeição de qualquer limitação externa, sejam elas institucionais, morais ou racionais, geram uma lógica de governação centrada na figura do líder como entidade infalível. Em Idi Amin, essa lógica atingiu formas extremas, onde a brutalidade do Estado se fundiu com o grotesco da autoidolatria e com o uso instrumental do misticismo para justificar decisões políticas e actos de violência sistemática.


O complexo de Deus, enquanto construção psicodinâmica, ultrapassa a dimensão clínica e revela-se um conceito operativo para compreender a estrutura simbólica dos regimes autoritários. Quando o Estado é capturado pelo imaginário de um só homem, todos os elementos da vida pública, desde a economia à moralidade quotidiana, passam a gravitar em torno das suas projeções, delírios e temores. A repressão torna-se teatral, a propaganda assume tons sagrados, e o povo é reduzido a um espelho colectivo que deve reflectir permanentemente a grandeza do líder.


Neste sentido, o estudo do fenómeno não deve ser reduzido a uma curiosidade histórica ou clínica, mas sim integrado numa reflexão mais ampla sobre os riscos da concentração de poder, da ausência de instituições robustas e da naturalização do personalismo político. O caso de Idi Amin serve como advertência de como o narcisismo patológico, quando imerso num contexto de impunidade e culto à personalidade, pode degenerar em formas de tirania profundamente destrutivas, não apenas para os que vivem sob o seu domínio, mas para a própria ideia de humanidade e civilização. Compreender, denunciar e prevenir a emergência de tais figuras permanece um imperativo ético e político incontornável.



Gomes Dias
Gomes Dias


Gomes Dias, nasceu e vive em Angola, na provínciade Luanda. É Secretário-Adjunto da Assembleia, da Juventude Unida dos País de Língua Portuguesa (JUPLP). É também membro associado júnior da Associação Angolana dos Profissionais de Comunicação Institucional (AAPCI). Formado em Comunicação Social, pela Universidade Agostinho Neto (UAN).

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Referência Bibliográfica 


Lara, S. V. (2015). No limiar do ethos do enunciador e do ator do enunciado no drama político O último rei da Escócia e no documentário-verdade General Idi Amin Dada: Um autorretrato

Leopold, M. (2009). Sex, violence and history in the lives of Idi Amin: Postcolonial masculinity as masquerade. Journal of Postcolonial Writing, 45(3), 321–330. https://doi.org/10.1080/17449850903064971

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