As vozes do Oriente sempre estiveram presentes e atentas: Nawal El Saadawi, Fatima Mernissi e as discussões sobre a atuação das mulheres muçulmanas em diferentes contextos
- CERES
- 6 de mai.
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Dra. Flávia Abud Luz
Ao longo dos últimos anos alguns eventos, como as manifestações que ocorreram no Irã, chamaram a atenção da mídia ocidental por conta da intensa atuação das mulheres em busca de mudanças sociais, relacionadas naquele contexto ao questionamento da polícia da moral e sua ação repressiva. O aparente ineditismo discutido na mídia guarda, na realidade, uma dificuldade de compreender as diferentes formas de atuação das mulheres muçulmanas em seus países, tema que ganhou maior relevância no debate acadêmico a partir da década de 1980 com a virada epistêmica pós-colonial.
No debate pós-colonial e suas leituras propostas acerca das consequências da atuação europeia junto às sociedades colonizadas são retomadas questões como o uso do véu (e seus múltiplos sentidos), a normatização dos corpos femininos e o uso da “questão feminina”, ou seja, uma tida preocupação com relação à costumes ou práticas culturais relacionados às mulheres, como ocorre, por exemplo, no campo dos Estudos Subalternos que tratavam do colonialismo inglês na Ásia e o uso da questão feminina para justificar intervenções na região, como analisa assertivamente Gayatri Chakravorty Spivak (2010).
A visão ocidental acerca da mulher muçulmana foi construída ao longo de séculos interação e posterior intervenção colonial europeia na região do Oriente Médio e Norte da África e compunha o entendimento europeu do “outro” oriental como alguém que representava o oposto dos valores ocidentais, era menos desenvolvido no sentido de um processo civilizatório positivista.
Meu intuito aqui, leitor (a) é fazer uma proposta diferente: vamos mergulhar um pouco no universo literário da egípcia Nawal El Saadawi e da marroquina Fatima Mernissi para tratar do tema da agência feminina no Oriente Médio e Norte da África, trazendo as contribuições de ambas as autoras como uma forma de reflexão sobre as relações estabelecidas entre religião, gênero e poder.
Nawal El Saadawi e as relações entre religião, gênero e poder
Nawal El Saadawi (1931-2021), médica, escritora e ativista egípcia, denuncia em suas obras a relação entre religião e opressão de gênero, problematizando práticas como a mutilação genital feminina e a subordinação das mulheres no matrimônio e na vida pública. Seu trabalho é uma ferramenta de resistência e emancipação, evidenciando como a memória das mulheres é apagada por discursos religiosos institucionalizados que servem aos interesses masculinos.
A produção literária de El Saadawi abrange desde ensaios teóricos até romances que denunciam a opressão patriarcal enraizada em sociedades islâmicas. Em obras como "A Mulher no Ponto Zero", a autora narra a história de uma mulher condenada à morte, cuja trajetória de violência e resistência evidencia as desigualdades impostas pelo patriarcado. A obra não apenas denuncia práticas opressivas como casamentos forçados e abusos, mas também destaca a luta de mulheres que desafiam as normas sociais estabelecidas.
Por meio de sua vasta obra El Saadawi foi capaz de romper com os mecanismos religiosos e de poder que impunham o silêncio aos indivíduos, sobretudo às mulheres e suas experiências traumáticas, pois funcionavam dentro do campo de negociação entre as memórias coletivas e as memórias individuais, processos estes descritos por Pollak (1989) como uma forma de encontrar pontos de contato entre tais memórias e reconstruí-las em bases comuns, como, por exemplo, no caso egípcio poderia-se pensar no nacionalismo ou no uso do discurso religioso que resgate um tempo específico por meio do qual a vida cotidiana dos muçulmanos deve ser guiada.
Neste sentido é possível argumentar que antes mesmo da atuação de El Saadawi o Egito já tinha passado por um processo de disputa de memórias em que os movimentos de mulheres desenvolvidos no processo de transformações internas por conta do impacto do colonialismo europeu, do embate entre a tradição e a modernidade, do discurso reformista e do nacionalismo, sobretudo sob com a formação do Estado independente, reivindicavam a participação das mulheres na arena pública, o acesso à educação e a alteração no código de status pessoal que regia a vida dos muçulmanos, porém a força dos movimentos de mulheres foi cooptada e sua reivindicações deixadas em um porvir que não ocorreu.
As ideias desenvolvidas pelas expoentes destes movimentos, tais como a adoção da bandeira do reformismo islâmico por meio da livre interpretação das fontes sagradas (ijthad) e a pauta do acesso à educação formal e religiosa permaneceram sob memórias subterrâneas, retomadas novamente por outros movimentos como forma de resistência ao caráter opressor e uniformizador da memória coletiva que já deixara de lado o protagonismo feminino na luta anticolonial.
El Saadawi apresenta aos seus leitores, sobretudo em seu livro A face oculta de Eva (2002, edição brasileira), memórias pessoais e de outras mulheres (que lhe foram conferidas por conta do exercício da profissão de médica) que são carregadas de experiências negativas com relação a elementos que constituem uma moral religiosa rígida que afeta homens e mulheres de formas desiguais e expõe a normatização dos corpos femininos por meio de argumentos morais religiosos – como a mutilação genital feminina, a criminalização do sexo fora do casamento – aspecto importante que a autora apresenta assertivamente como complexo, sobretudo devido a relação entre religião, poder.
As memórias e experiências trazidas por El Saadawi também podem ser entendidas sob o ponto de vista de Pierre Nora (1993), que ao tratar do trânsito entre memória e história, definindo os limites e diferenças entre ambas as categorias, argumenta sobre os lugares de memória e seus “três sentidos da palavra”, sendo estes um aspecto material, um simbólico e funcional. Neste caso, a valorização da tradição nos países de população muçulmana e sua observação no que tange ao controle do corpo das mulheres, por exemplo, pode ser visto como uma expressão de lugar de memória, pois une elementos material e simbólico – por meio da modéstia na vestimenta com o uso do véu que simbolizava a pertença à religião e a observação de seus costumes – ,bem como o aspecto funcional, pois os rituais ligados à honra da família são evocados em diversos momentos, tais como antes do casamento e depois do mesmo, quando da necessidade de provar a pureza/virgindade da mulher.
Em sua autobiografia The Daughter of Isis (1999), por exemplo, El Saadawi destacou a violência (física, psicológica, sexual), a normatização do corpo por meio da mutilação genital feminina (MGF) e o desenvolvimento de entendimentos jurídicos acerca dos direitos e deveres das mulheres junto às leis de família (que tratam de temas como casamento, divórcio, custódia de filhos e direitos de herança) como temas centrais para discutir como interpretações fundamentalistas do Islã são usadas para controlar os corpos e a sexualidade feminina. A abordagem de El Saadawi se baseia tanto em sua experiência como médica quanto em uma leitura feminista da história, desmistificando crenças que naturalizam a subordinação feminina.
Além de sua contribuição acadêmica e literária, El Saadawi foi uma ativista incansável pelos direitos das mulheres no Egito e além. Sua atuação política e seus posicionamentos críticos resultaram em perseguições, prisões e censura, mas também consolidaram seu papel como uma das vozes mais influentes do feminismo árabe. Seu legado segue inspirando movimentos feministas contemporâneos, reafirmando a necessidade de resistência e transformação social.
Fatima Mernissi, a construção histórica das normas e suas consequências para as mulheres
A socióloga marroquina analisa, por sua vez, a construção histórica das normas islâmicas e suas consequências para a exclusão das mulheres dos espaços de poder. Em seus textos, Mernissi revisita textos religiosos e propõe uma releitura feminista do Islã, demonstrando que a marginalização das mulheres é fruto de interpretações enviesadas e não uma determinação divina.
Mernissi, que se esforçou para obter o direito à fala e receber em troca uma escuta atenta de interlocutores que não eram necessariamente muçulmanos ou africanos (do Magreb, por exemplo, considerando sua nacionalidade marroquina), compõe o grupo de mulheres que desenvolveram a construção discursiva do feminismo islâmico (final de 1980 e durante 1990) é fundamental para contrapor com uma versão oficial da história das mulheres no Islã e demonstrar sua potência ao relevar as experiências não-ditas.
A referida versão oficial da história das mulheres no Islã faz uma alusão ao período pré-islâmico como sendo estruturado pela ignorância, sobretudo com relação ao tratamento direcionado às mulheres e a questão do impedimento do infanticídio de meninas, e busca demonstrar os direitos que às mulheres foram garantidos por meio do da institucionalização do Islã. Tal versão não considera aspectos como a criação de uma distância entre as mulheres do profeta Maomé e a esfera política pública passou a ser vista como modelo de conduta a ser seguido; bem como a transferência dos direitos sexuais da mulher ao homem trouxe uma nova base para o casamento (em diversas sociedades, mesmo patriarcais, era monogâmico) que Leila Ahmed discute em sua obra Women and gender in Islam: roots of a modern debate (1992) ao fazer uma análise acerca das relações estabelecidas entre as diversas sociedades islâmicas e a opressão da mulher e dos discursos histórico-religiosos envoltos em tal opressão.
O harém em que Mernissi foi criada na cidade de Fez (Marrocos), ainda no período da dominação francesa (1912-1956), apresenta em seu interior mulheres que observavam nas “pequenas transgressões” da tradição – principalmente as leis que impõem fronteiras (nem sempre visíveis) e sagradas entre proibido e permitido e também separavam homens e mulheres em espaços possíveis de atuação –, uma forma de atuar no ambiente doméstico de forma a expressar a liberdade externa que lhes era negada em uma sociedade controlada por homens e que naquele momento histórico lidava com o embate entre práticas tradicionais (costumes) as práticas oriundas dos hábitos europeus.
As experiências vivenciadas no harém quando menina e a continuidade dos estudos forjaram a atuação acadêmica e ativista de Mernissi. Ainda em sua infância, Mernissi entra em contato, por meio de sua prima Chama, com a produção de feministas árabes pioneiras (do Egito e Líbano) – tais como Aisha Taymour, Zaynab Fawwaz e Huda Sha’raoui – que nas últimas décadas do século XIX e início do século XX escreviam acerca dos direitos das mulheres, sobretudo temas como o questionamento do uso do véu, a questão da segregação das mulheres (física e simbólica) e a atuação feminina na esfera pública (com o direito ao voto).
Assim como El Saadawi, Fatima Mernissi buscou tecer uma série de reflexões e questionamentos acerca da visão ocidental e estereotipada com relação – e principalmente - às mulheres muçulmanas em diferentes países no Oriente Médio e Norte da África. Mernissi (1996) escreveu muito acerca da figura da Scherazade, recontando sua história presente na obra As Mil e Uma Noites como um exemplo de agência, uma análise diferente daquela apresentada e reforçada por uma visão ocidental, patriarcal e orientalista sobre a dita passividade das mulheres com relação à existência de diferentes formas de opressão.
A habilidade de Scherazade em contar histórias tinha transformando-a, segundo Mernissi (1996), em uma mulher respeitada, ou seja, ela tinha aprendido formas/alternativas de garantir sua sobrevivência e mudar sua realidade, transcendendo as limitações impostas inicialmente a ela como uma mulher que voluntariamente se entregou em casamento ao rei Shahriar para que sua irmã mais nova não tivesse que se envolver com o monarca que, por sua vez, já tinha matado diversas mulheres por conta de desconfiança.
Vozes femininas em busca de mudanças ao longo do tempo
Como eu busquei apresentar ao longo do texto, a interseção entre religião, gênero e política tem sido objeto de análise crítica por diversas intelectuais feministas do mundo árabe. Entre elas, destaquei aqui Nawal El Saadawi e Fatima Mernissi, cujas obras revelam um compromisso com a desconstrução das narrativas dominantes que perpetuam a subalternização das mulheres em contextos islâmicos. Por meio da revisão histórica, da memória coletiva e da agência feminina, essas autoras questionam as estruturas patriarcais, promovendo novas compreensões sobre o papel das mulheres na sociedade.
Nawal El Saadawi, médica, escritora e ativista egípcia, denuncia em suas obras a relação entre religião e opressão de gênero, problematizando práticas como a mutilação genital feminina e a subordinação das mulheres no matrimônio e na vida pública. Seu trabalho é uma ferramenta de resistência e emancipação, evidenciando como a memória das mulheres é apagada por discursos religiosos institucionalizados que servem aos interesses masculinos.
Por outro lado, Fatima Mernissi, socóloga marroquina, analisa a construção histórica das normas islâmicas e suas consequências para a exclusão das mulheres dos espaços de poder. Em seus escritos, ela revisita textos religiosos e propõe uma releitura feminista do Islã, demonstrando que a marginalização das mulheres é fruto de interpretações enviesadas e não uma determinação divina.
Ambas as autoras utilizam a história e a memória como formas de resistência, questionando as bases sociopolíticas que sustentam a desigualdade de gênero e reivindicando a agência das mulheres na construção de sociedades mais justas. Seus legados seguem inspirando debates e ações em prol da equidade, reafirmando que a luta feminista transcende fronteiras e contextos culturais.

Flávia Abud, Dra. em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião na Universidade Presbiteriana Mackenzie, possui especialização em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Armando Álvares Penteado (2014). Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". É integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Grupo de Estudos e Pesquisa em Migrações Internacionais - MIGREPI (UFABC); e Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades. É filiada à Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Atualmente professora de Relações Internacionais da UniLaSalle de Manaus.
Referências
AHMED, Leila. Women and gender in Islam: roots of a modern debate. New York &London: Yale University Press, 1992.
EL SAADAWI, Nawal. A face oculta de Eva: as mulheres do Mundo Árabe. São Paulo: Global Editora, 2002.
EL SAADAWI, Nawal.A daughter of Isis: the autobiography of Nawal El Saadawi. London: Zed Books, 1999.
MERNISSI, Fatima. Beyond the veil: Male-female dynamics in modern Muslim society. Indiana University Press, 1987.
MERNISSI, Fatima. Sonhos de Transgressão: minha vida de menina num harém. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo (10), dez de 1993.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, vol.2, pp.3-15, 1989.
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