Conflito Étnico, terrorismo e Segurança Nacional do Mali
- CERES
- 9 de abr.
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O Mali vem enfrentando uma série de instabilidades na sua história recente. A realidade do país é caracterizada por uma grande quantidade de etnias, grupos separatistas e fundamentalistas islâmicos, governos instáveis, problemas relacionados a seca e pobreza. Localizado na porção ocidental do continente africano, o Mali teve uma independência tardia, deixando de ser colônia da França em 1960 e, desde então, vem sendo o cenário de conflitos. Entre as etnias presentes na sociedade, destacam-se os tuaregues, uma minoria nómada, localizada na região norte do país que, devido a seu modo de vida, é negligenciada pelo governo. A constante segregação nos aspectos sociais e políticos fez surgir o desejo pela independência da região norte e a formação de um Estado autónomo denominado Azawad. Assim, a etnia começou a se organizar em grupos e a realizar revoltas das quais quatro foram de maiores proporções, as de 1962, 1990, 2006 e 2012, cujas consequências se estendem até os dias actuais (Figueiredo, 2021:4).
O conflito se iniciou com grupos tuaregues lutando pela criação de um Estado autónomo e ganhou proporções internacionais na medida em que grupos islâmicos fundamentalistas passaram a lutar e a conquistar espaço no país. Estes têm o objeto de instituir um Estado islâmico baseado na Sharia e não medem esforços para concretizar seus anseios. Existem diversos grupos atuando no país, em uma constante rearticulação entre eles (coligações e dissoluções) e permitindo o surgimento de novos movimentos. Durante o conflito, há momentos de apoio entre grupos tuaregues e islâmicos, estabelecendo alianças quando são de seus interesses. Do mesmo modo, existem tuaregues que não são a favor da luta separatista, os que integram os grupos extremistas, os que provocam violência intercomunitária e grupos pró-governo.
Segundo Lopes e Oliveira (2013:64), foram diversas as tentativas de resolução do conflito. Primeiramente, foi desdobrada uma missão de paz conjunta entre ONU, União Africana e ECOWAS, a African-led International Support Mission in Mali (AFISMA). Ela tinha como objetivo reestabelecer o controle do país e proteger os civis, mas não conseguiu cumprir seu mandato devido à insuficiência de tropas e à falta de financiamentos. A França interveio diretamente no conflito no início de 2013 e a pedido do governo malinês, desdobrando a Operação Serval. Inicialmente, ela tinha como objetivo preservar a integridade territorial do país e impedir que os grupos jihadistas realizassem ataques em direção ao sul e tomassem a capital. A operação continua atuando no país, mas com uma nova configuração. Em 2014 ela foi substituída pela Operação Barkhane, cuja finalidade é rastrear e conter grupos terroristas não somente no Mali, mas por toda a região do Sahel .
A intensificação da violência levou a ONU a desdobrar uma nova operação de paz, em abril de 2013, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas de Estabilização no Mali (MINUSMA). Seu mandato determinava, entre outros pontos, o apoio ao processo político, a estabilização dos principais centros populacionais e o restabelecimento da autoridade do Estado, sendo uma operação de paz multidimensional robusta, autorizada a usar todos os meios necessários para implementar o mandato, e proteger a população civil e os funcionários das Nações Unidas (Ibid).
Logo após o estabelecimento da Missão, houve certo progresso na questão política, uma vez que foi assinado, em maio de 2015, o Acordo de Paz e Reconciliação do Mali. Todavia, o diálogo com os grupos extremistas permanece um desafio. Estes continuam realizando ataques por diversas partes do país, o que dificulta a estabilização. Os constantes ataques, principalmente contra os membros da MINUSMA, tornaram a Missão em uma das mais letais que a ONU já desdobrou. Os ataques direcionados às bases da ONU tornam difícil a proteção dos civis e a população fica relutante em acreditar que os militares possam protegê-los, temendo que a presença da ONU os transforme em alvos.
A segurança no Mali
A situação de segurança no Mali é preocupante, uma vez que a missão não está conseguindo proteger os civis de maneira eficaz. Os grupos armados separatistas não têm civis como alvo específico, mas esses acabam sofrendo danos colaterais. Já os grupos extremistas islâmicos continuam realizando com frequência ataques direcionados à população civil. Como resultado, a situação humanitária permanece um desafio para a Missão, com um grande número de pessoas deslocadas e refugiadas, sofrendo de insegurança alimentar e sem acesso a serviços básicos, como saúde e infraestrutura. As violações de direitos humanos continuam a ocorrer, potencializando a dificuldade de se estabilizar o país.
O conflito no Mali é complexo e multifacetado. A Missão da ONU actua em um ambiente extremamente hóstil em que as antigas operações de paz nunca antes haviam estado e a constante deterioração da situação de segurança faz com que permaneçam altas as exigências e expectativas em relação às forças da MINUSMA e da França. O país conta com a presença de atores heterogêneos, cada qual com seus próprios interesses e objetivos. Não há perspectivas de que as tropas internacionais irão se retirar tão cedo do país e, ao se analisar o conflito como um todo, percebe-se que a situação de segurança permanece crítica e que a paz e a estabilidade permanecem como um objetivo a longo prazo para ser alcançado.
O conflito tuaregue no Mali está relacionado à complexa história do país pósindependência. Ao final do período de colonização europeia, o Mali era profundamente subdesenvolvido, não possuía infraestrutura básica e a população era composta fundamentalmente por agricultores e pastores nômades. O primeiro presidente, Modibo Keita, buscou desenvolver e modernizar o país por meio de um regime socialista autoritário e alinhado à URSS, que se posicionava contrário ao nomadismo. Esse estilo de vida era visto como retrógrado, improdutivo e indesejável. Keita entendia que a sedentarização dos nômades tuaregues era vital para o desenvolvimento do país, para que essa população pudesse ser transformada em cidadãos “produtivos”. Os tuaregues ficaram rotulados como “les malis inutiles” (os malineses inúteis) e, naturalmente, a política de modernização foi vista por esse grupo como uma nova forma de colonização (Benjaminsen, 2008:55).
É importante dizer que, concomitante a esse processo, foi surgindo em meio à população tuaregue o desejo pela independência, o sonho de constituir um Estado autônomo, chamado de Azawad. Nos primeiros anos após a independência do Mali, a discriminação e a marginalização da população tuaregue no processo de modernização do país foi se tornando evidente e, apesar de carecerem de uma agenda política unificada, iniciou-se no norte, em 1962, a primeira rebelião. A violência escalou durante o ano de 1963 e foi violentamente reprimida pelas forças armadas do governo, equipadas com armamentos soviéticos. Ao final de 1964, o governo tinha sido capaz de vencer militarmente os rebeldes e de submeter a população tuaregue a uma rígida administração militar, gerando um grande fluxo de refugiados (Keita, 1998:42).
Ao analisar o conflito do Mali percebe‐se que a insurgência continua a principal razão pela qual os militares do Mali tomaram o poder acusando o governo civil de não garantir segurança do país.

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