POLÍTICA E SOCIEDADE: O espelhismo digital e a erosão do sentido comum
- CERES
- há 1 dia
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"Em tempos em que a opinião se confunde com a verdade e os algoritmos ditam o que pensamos, recuperar o sentido das palavras torna-se um ato revolucionário..." Wesley S.T Guerra
Voltar a chamar as coisas pelo seu nome...
Vivemos tempos de confusão semântica. Na era da pós-verdade e do efeito influencer, as palavras esvaziaram-se de conteúdo e as ideias foram substituídas por perceções instantâneas. O “Like” substituiu o argumento; a popularidade tornou-se sinónimo de razão; e a emoção, ainda que efémera, adquiriu mais peso do que o pensamento crítico.
Devemos voltar a chamar as coisas pelos seus nomes, mesmo que fazê-lo hoje pareça um ato de resistência. Porque neste século XXI acelerado e saturado de informação, a verdade já não importa: importa a viralidade.
A ditadura do algoritmo
Os algoritmos das redes sociais criaram um mundo paralelo onde todos têm razão. Um universo domesticado que confirma os preconceitos, recompensa a superficialidade e castiga a reflexão. As redes não conectam a humanidade; fragmentam-na. Fabricam bolhas emocionais onde o pensamento dissidente é percebido como agressão e a ignorância, como identidade coletiva.
Os influencers, esses novos profetas do vazio, ocuparam o lugar dos intelectuais, dos cientistas e dos professores. Já não se consulta um especialista, mas sim um rosto com filtro que opina sobre tudo sem saber de nada. A palavra “autoridade” tornou-se suspeita, e a palavra “fama” converteu-se na nova forma de legitimidade.
As pessoas atribuem mais valor às palavras tolas que confirmam o seu viés do que à evidência empírica que o questiona. Assim, os factos perderam peso e a opinião erigiu-se como nova moeda de troca. Tudo é relativo — mesmo aquilo que não o deveria ser.
A erosão do diálogo
Esta dinâmica contaminou todos os espaços da vida humana: a família, a política, o trabalho. A polarização tornou-se norma, e a escuta, raridade. Hoje já não debatemos para compreender, mas para vencer. Não dialogamos: disparamos argumentos como balas digitais, convencidos de que a verdade se mede em retweets.
A reatividade transformou-se numa forma de identidade. Em vez de construir pontes, erguemos trincheiras. A sociedade já não se organiza em torno de ideias, mas de emoções coletivas e microtribos digitais. Como diria um filósofo, as pessoas estão tão dispostas a acreditar em algo, que são capazes de atacar quem lhes revela a verdade.
E assim, ressignificamos as coisas: mantemos os nomes, mas alteramos-lhes a essência.
A mutação da política
Na política contemporânea, esta distorção semântica é mais visível do que nunca. A direita, outrora defensora do liberalismo e dos direitos individuais, transformou-se numa corrente conservadora que procura impor a sua moral e a sua ideologia como lei universal. Já não se trata de limitar o Estado para proteger o cidadão, mas de usar o Estado para o disciplinar.
A esquerda, por sua vez, oscila entre um progressismo hiperindividualista nos países ricos e um autoritarismo populista nos países empobrecidos. O discurso da emancipação confunde-se com o do controle, e o da igualdade com o da uniformidade. A utopia foi substituída pela palavra de ordem, e esta, pelo hashtag.
O resultado é um vazio moral e político onde as etiquetas valem mais do que as ideias, e as causas se transformam em mercadoria ideológica.
A farsa da meritocracia e o ocaso do trabalho
O discurso da meritocracia, apresentado como o novo evangelho do capitalismo global, oculta uma cruel paradoxo. Dizem-nos que o sucesso depende do esforço individual, mas o sistema está desenhado para concentrar a riqueza nas mãos de poucos. Chamam-lhe “oportunidade”, mas na realidade é exploração.
Os direitos laborais erodem-se, os salários perdem valor e o trabalhador converte-se num recurso descartável. Henry Ford sonhava que os seus empregados pudessem comprar os automóveis que fabricavam. Hoje, nem sequer podem pagar o transporte para chegar ao trabalho.
O “cliente interno” — esse ideal de motivação e dignidade dentro da empresa — desapareceu. O mercado já não se orienta para as pessoas, mas para os algoritmos de consumo. Não importa o trabalhador, nem sequer o consumidor nacional: o que importa é o cliente externo, o poder de compra estrangeiro, o target premium.
E, no entanto, ninguém parece fazer a pergunta essencial: quando tudo isto passar, quem ficará para trabalhar e para comprar?
O espelho da liberdade
Em nome da liberdade, construímos uma jaula invisível. Acreditamos ser livres porque podemos escolher entre mil versões do mesmo produto, mil opiniões sobre o mesmo tema, mil identidades pré-fabricadas. Mas, na realidade, somos escravos do scroll infinito, do algoritmo que prevê o que pensamos antes mesmo de o pensarmos.
A verdadeira liberdade — a de pensar, de discordar, de construir significado — está em perigo de extinção. Porque para pensar livremente é preciso aceitar a possibilidade de estar errado. E esse é o maior tabu da nossa era.
Voltar a nomear para voltar a compreender
Talvez a única forma de recuperar a lucidez seja voltar a nomear as coisas pelos seus nomes. Chamar mentira à mentira, exploração à exploração, censura à censura — e não escondê-las atrás de eufemismos digitais.
Voltar a pensar, mesmo que doa. Voltar a escutar, mesmo que incomode. Voltar a discordar, mesmo que isso nos isole do rebanho virtual.
Porque a verdade não precisa de likes, e a lucidez não se mede em seguidores. A verdade, simplesmente, é.
E quando o ruído se calar, talvez ainda reste alguém capaz de a reconhecer.

Wesley Sá Teles Guerra é especialista em cooperação internacional e paradiplomacia, com uma sólida formação em instituições de referência internacional. É fundador do Centro de Estudos das Relações Internacionais (CERES), no Brasil, e atualmente atua como gestor do Fundo de Cooperação Triangular entre a Europa, a América Latina e a África na Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB), com sede em Madrid.
Ao longo da sua trajetória, realizou estudos em instituições como o CPE de Barcelona (Negociações Internacionais), a FESPSP (Relações Internacionais e Ciência Política), a Universidade da Corunha – UDC (Mestrado em Políticas Sociais e Migrações), o MIB de Massachusetts (MBA em Marketing Internacional), a Universidade de Andorra (Mestrado em Cidades Inteligentes) e é doutorando em Sociologia na UNED (Espanha).
É autor dos livros Cadernos de Paradiplomacia, Paradiplomacy Reviews e Manual de Sobrevivência das Relações Internacionais. Participa regularmente em fóruns internacionais sobre cidades inteligentes, governação global e paradiplomacia, e tem sido comentarista convidado na emissora CBN Recife. Também foi finalista do Prémio ABANCA de investigação académica. Além disso, integra redes e plataformas como o CEDEPEM, ECP, Smart Cities Council e REPIT, com uma participação ativa no âmbito internacional.
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