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França e seus territórios de além mar

  • Foto do escritor: CERES
    CERES
  • 26 de jun.
  • 10 min de leitura

Porque a França os mantém?


Com seus territórios ultramarinos, a França pode contar com uma extensa rede e uma presença em três oceanos. 


Hoje, 2,8 milhões de pessoas vivem nos 12 departamentos e coletividades ultramarinas e na Nova Caledônia. Os mais populosos são Guadalupe, Martinica, Guiana Francesa e Reunião, que têm status de departamento desde 1946 e de região desde 1982. Entre elas, essas quatro regiões têm uma população total de 1,9 milhão, ou cerca de dois terços da população da França ultramarina. A essas quatro antigas colônias, como às vezes são chamadas, devemos acrescentar Mayotte, que se tornou o 101º departamento da França em 2011. 


Os Territórios Ultramarinos Franceses também incluem outros territórios chamados Coletividades Ultramarinas, a maioria dos quais está associada apenas à União Europeia. Entre eles estão Wallis e Futuna, Polinésia Francesa, Saint-Pierre e Miquelon e Saint-Barthélemy. Há também ilhas desabitadas ou sem população permanente, como as Terras Austrais e Antárticas Francesas, que completam esse agrupamento heterogêneo e disperso que dá à França a segunda maior Zona Econômica Exclusiva do mundo depois dos Estados Unidos, com 10,1 milhões de km². 


Essa presença permite que a França mantenha relações transfronteiriças com dezenas de países distantes de sua base europeia. Por exemplo, a França faz fronteira com o Brasil e o Suriname, a Austrália e a Nova Zelândia. Com uma área de superfície marítima tão grande, a França também possui extensas áreas de pesca e recursos minerais submarinos significativos. 


Outra vantagem: os Territórios Ultramarinos Franceses representam 80% da biodiversidade da França. Um quarto de seus parques nacionais estão localizados fora da França, em Guadalupe, Guiana Francesa e Reunião. E na Nova Caledônia, parte do recife de coral de 1.600 km de extensão é um Patrimônio Mundial da UNESCO.



Territórios Franceses pelo mundo


Territórios Franceses
Territórios Franceses

Esses territórios ultramarinos são, portanto, ativos estratégicos inegáveis para a França, exceto pelo fato de que a administração desses territórios por Paris é eminentemente complexa: devido à diversidade desses territórios e às suas características históricas e geográficas específicas. Em particular, a dinâmica demográfica é altamente contrastante. Por um lado, as populações da Martinica e de Guadalupe estão diminuindo como resultado do êxodo em massa de jovens para a França. Por outro lado, a Guiana Francesa e Mayotte estão vivenciando uma explosão demográfica devido aos altos níveis de imigração ilegal. A população da Guiana Francesa se multiplicou por oito e a de Mayotte por 12 em 60 anos.

Nestes últimos anos a situação esta sobre tensão, para não dizer mais, em vários desses territórios. Tensões por vezes antigas, mas também acrescentadas durante a presidência Macron.


Situação dos territórios franceses


Apesar de seus diferentes status, todas as economias ultramarinas sofrem de males semelhantes. O desemprego é de duas a três vezes maior nas Antilhas Francesas e na Ilha da Reunião do que na França continental. 


O PIB per capita é mais de um terço menor. A população dos territórios ultramarinos franceses também é mais vulnerável, com vários problemas de saúde: diabetes, obesidade, dependência de drogas e álcool. 


Ainda muito dependente de um relacionamento quase exclusivo com a França, as economias das regiões ultraperiféricas são extremamente frágeis. Entre 50% e dois terços do comércio é feito somente com a França. Essa situação é um legado do sistema econômico colonial conhecido como “l'Exclusif”.


No passado, os territórios precisavam fornecer matérias-primas agrícolas, como bananas, e, em simultâneo, serviam como pontos de venda para os produtos franceses. Sem nenhum projeto industrial ambicioso, a economia ultramarina depende principalmente de transferências estatais, várias formas de ajuda e salários artificialmente altos. 


Esse é outro legado do período colonial: os funcionários públicos recebem salários excessivos de até 40% nas Antilhas e 108% na Polinésia Francesa. 


Esse sistema teve um efeito inflacionário, assim como um imposto específico: o imposto portuário. Esse imposto alfandegário se aplica às importações para Guadalupe, Guiana Francesa, Martinica, Mayotte e Reunião. Com o objetivo de proteger a produção local e financiar as coletividades ultramarinas, esse imposto teve o efeito de aumentar os preços. Como resultado, a questão do alto custo de vida levou a grandes protestos na Reunião em 2012, na Guiana Francesa em 2017 e, mais recentemente, na Martinica em 2024. 


Crise nas Antilhas


De acordo com o INSEE , nas ilhas, os preços dos alimentos são 40% mais caros do que na França continental. Antes de chegar às prateleiras da Martinica, por exemplo, os produtos passam por um circuito caro. Há a compra na França, o transporte, “l’octroi de mer” — o imposto marítimo, um imposto específico nas regiões ultramarinas para as importações e, no final, a margem dos distribuidores. Quatro etapas que inflacionam os preços finais.


O “escudo de qualidade-preço” criado após a grande greve geral de 2009, que modera os preços dos produtos de grande consumo, não satisfaz a população. Então, quais são as soluções sustentáveis para resolver o problema do custo de vida elevado? 


Organizações como o Conselho Executivo da Martinica, apela ao Estado com várias propostas como decretar, por três anos, com preços fixos para 54 famílias de produtos, a redução do IVA, assim como a redução das margens dos grossistas e distribuidores. Além dessas opções, é também recomendado que uma produção local seja valorizada.


As tensões que levaram a confrontos violentissimos e ao decreto do Estodo de sitio, também são alimentadas pelas crises anteriores que podemos categorizar como sistêmicas, entre elas resumindo:


- Crise de alojamento: com a redução das construções e aumento dos aluguéis

- Crise do mercado do trabalho com alto índice de desemprego

- Crise energética com blackouts frequentes devido aos poucos investimentos de manutenção nas redes elétricas, que por sua vez impactaram vários seguimentos da economia

- Crise da água com cortes frequente e baixa pressão

- Crise do clordecone que é um pesticida organoclorado que foi amplamente utilizado nas plantações de banana da Martinica e da Guadalupe entre 1972 e 1993 para combater a broca do bananeiro. Devido à sua persistência no meio ambiente e à sua toxicidade, constitui hoje um importante problema sanitário, ambiental e social para as Antilhas. O estado francês não reconhece sua responsabilidade nesse envenenamento da população, mas é um dos maiores escândalos sanitários da história francesa. Enquanto isso pessoas morrem de cancer e outras doenças decorrentes do clodercone.


O governo Macron, um pouco perdido, aceitou negociações sem os líderes populares locais e definiu com os grossistas uma redução imediata dos preços de 9%, o que não satisfez a população.


Os protestos foram duramente reprimidos e os líderes dos movimentos presos.


Uma leve acalmia em 2025, mas o barril de pólvora das Antilhas esta prestes a explodir novamente a qualquer momento.


Crise na Guiana


A Guiana Francesa é a única porta de entrada da União Europeia para a América do Sul, ela atrai um grande número de imigrantes dos países vizinhos e do Caribe.

Estima-se que 85% da população ilegal seja proveniente do Suriname, Brasil e Haiti. O motivo: fronteiras particularmente porosas. A leste, a fronteira com o Brasil é parcialmente formada pelo rio Oyapock e, a oeste, o Maroni e seus afluentes formam os 520 km que dividem o Suriname.


Como resultado, as atividades ilegais alimentam uma próspera economia subterrânea. O garimpo ilegal de ouro está florescendo e a região é um centro de tráfico de drogas. Dizem que o Suriname e a Guiana Francesa são responsáveis por um terço da produção mundial de cocaína. Uma realidade social e econômica que contrasta com a vitrine tecnológica do centro espacial de Kourou de um decola o foguetão ARIANE.


Crise na Nova Caledônia


A Nova Caledônia viveu recentemente tumultos urbanos de uma magnitude nunca vista desde os anos 1980. Na linha de frente dos confrontos, que deixaram quatro mortos e saques, está uma juventude em busca de reconhecimento.


Em 1984, os manifestantes que hoje ateiam fogo em Nouméa e seus arredores ainda nem haviam nascido. Naquele ano, o secretário de Estado para os Territórios Ultramarinos, Georges Lemoine, fez aprovar pela Assembleia Nacional um estatuto para o arquipélago, apesar da oposição dos independentistas, rejeitando todas as suas emendas. No centro da discordância, já estava a composição do corpo eleitoral. Uma “imposição” que provocaria o boicote às eleições territoriais de 18 de novembro de 1984. Veio então um início de uma espécie de “guerra civil” que os habitantes deste território francês do Pacífico ainda hoje chamam pudicamente de “os Eventos”.


O estado de emergência já havia sido declarado uma vez na Nova Caledônia, em janeiro de 1985, por um período de cinco meses e agora pronunciado novamente.


Um ar de déjà-vu, agora que o ministro do Interior, Gérald Darmanin, acaba de fazer aprovar pela Assembleia Nacional um projeto de lei constitucional que visa alargar o corpo eleitoral para as eleições provinciais aos nativos e residentes há mais de dez anos no território. Mais uma vez, apesar da oposição dos independentistas, que desejam negociar as condições deste “degelo”. Mas 2024 não é 1984. 


A ala radical da Frente de Libertação Nacional Kanak e Socialista (FLNKS), a União Caledoniana, considerando-se “humilhada” pelo método implementado pelo Estado, criou, em março passado, a CCAT, a Célula de Coordenação das Ações de Campo. Sua base: jovens militantes dos bairros populares da capital, Nouméa, e das tribos. À sua frente: militantes decepcionados com a incapacidade dos eleitos de fazer ouvir sua voz. Seu objetivo: opor-se a todo custo ao descongelamento do corpo...


A discriminação e o sentimento de injustiça estão reacendendo as tensões socio-identitárias e o desejo de independência entre parte da população, principalmente na Nova Caledônia.

O arquipélago estava dividido entre os lealistas, que tendiam a viver na costa oeste e eram principalmente de origem europeia, que queriam permanecer no domínio francês, e os independentistas, que eram em grande parte do povo indígena conhecido como Kanaks, que viviam no leste do arquipélago. 


Em 1988, os Acordos de Matignon negociados com Michel Rocard (primeiro-ministro do François Mitterand) puseram fim ao período de insurreição ligado ao despertar da identidade Kanak em torno da figura de Jean-Marie Tjibaou. Esses acordos, complementados pelos de Nouméa em 1998, previam a organização de referendos sobre autodeterminação. Três referendos foram realizados em 2018, 2020 e 2021. 


Surgiu uma maioria a favor da manutenção do vínculo com a França, embora a última votação tenha sido boicotada pela facção pró-independência e tenha reacendido as tensões em uma população caledônia altamente fragmentada, com os Kanaks representando 41% da população, pessoas de origem europeia, incluindo Caldoches, os descendentes de colonos, que representam 24%, e outras comunidades, principalmente asiáticas e da Oceania, que representam cerca de 27% da população. 


Em 2024, a reforma constitucional com o objetivo de ampliar o eleitorado foi criticada pelo movimento pró-independência e levou a tumultos nos quais 14 pessoas foram mortas. A violência teve um impacto direto na estratégia da França para o Indo-Pacífico, uma região onde a China está tentando impor sua liderança. 


Esses protestos neste território ultramarino também foram alvos de operações de interferência ou desestabilização pelas redes sociais por países como a Rússia e o Azerbaidjão que fizeram uma ampla campanha contra a França.


Crise em MAYOTTE


Mayotte é o 101º departamento da França. Toda a ilha foi devastado pelo ciclone Chido em dezembro de 2024, quando ventos devastadores e chuvas intensas causaram danos humanos e materiais consideráveis. 


Foi uma tragédia que evidenciou um paradoxo: o fato de Mayotte ser o mais pobre dos departamentos franceses, com moradias precárias que foram destruídas pelo ciclone, e, ao mesmo tempo um território francês cujo sistema de saúde atrai migrantes da região, principalmente da vizinha República das Comores. Muitos desses migrantes, mulheres gravidas, arriscam suas vidas e atravessam o oceano para que seus filhos nasçam em território francês e possam se beneficiar das ajudas e suporte que a França proporciona.


O governo atual, com claro discurso para seduzir o eleitorado de direita e extrema-direita se propõe de fazer um “entorse” a Constituição e não reconhecer o Direito do solo, ou seja, o fato que qualquer pessoa nascida em território francês é francesa, exclusivamente em Mayotte, provocando uma onda de protestos inclusive em Paris.


Mayotte tem uma história única com Paris. Ligadas à França desde o século XIX, as quatro ilhas de Comores se tornaram um único território ultramarino em 1946. Em 1974, o arquipélago desejou se tornar independente, e foi organizada uma consulta sobre autodeterminação. Os habitantes de Anjouan, Mohéli e Grande Comore votaram pela independência, mas Mayotte optou por permanecer na França. 


A fragmentação do arquipélago levantou questões de direito internacional, com o desrespeito ao princípio da integridade territorial das Comores, mas permitiu que a França mantivesse sua presença estratégica no Oceano Índico.


Ao longo dos anos, a ilha francesa de Mayotte se tornou um El Dorado para os habitantes das outras ilhas que compõem a República das Comores, que está afundando na instabilidade política e na pobreza. A catástrofe causada pelo ciclone Chido evidenciou as dificuldades que se concentram em Mayotte como resultado desses fluxos migratórios, mal administrados: infraestrutura em ruínas, serviços públicos falidos, tecido econômico atrofiado, esse departamento mais pobre da França parece ser o filho esquecido da República. 


Conclusão


A França tem a segunda maior área marítima do mundo, graças aos seus territórios ultramarinos espalhados por todos os oceanos. Isso dá à França um status único como um país onde o sol nunca se põe. Este território também implica que existam milhares de quilómetros quadrados inexplorados, como o fundo marinho profundo, 92% do qual é ainda totalmente desconhecido, mas que está a ser disputado e é objeto de uma estratégia nacional que pretende explorá-lo para melhor o compreender.


Três fachadas marítimas da França continental e seu vasto domínio marítimo favorecem o desenvolvimento de emblemáticas indústrias nacionais. Subsidiárias tradicionais bem desenvolvidas são adicionadas às subsidiárias em rápido desenvolvimento, decorrentes da transformação da sociedade e do desenvolvimento tecnológico. Terra de inovação, a França acolhe startups marítimas em muitos campos: digital, robótica, alimentos, energia, transporte, biodiversidade e saúde. 


Este ecossistema próspero fornece soluções para proteção dos oceanos, descarbonização de navios, pesca, aquicultura sustentável e processamento de dados digitais marítimos. Em plena transformação e sempre em busca de inovação, a economia francesa gerou um preço de produção de 116 milhões de euros em 2023, gerando mais de 530 mil empregos diretos. Até 2030, a ambição do setor é atingir um preço de produção de quase 150 milhões e criar mais de um milhão de empregos.


Ao lado de todo esse cenário fantástico e promissor, vivem territórios que permitem essa expansão e projeção que acabam sendo marginalizados, esquecidos e explorados.

Pensava-se que as cidadanias de segunda classe somente existiram na época colonial, mas as decisões e atuações politicas dos sucessivos governos franceses demonstram que não aconteceram muitas mudanças, na prática.


Marco Alves
Marco Alves

Por Marco Alves

Mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Paris Oeste Nanterre, em Direito Internacional e Europeu pela Universidade Grenoble Alpes e em Relações e Negocios Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais de Paris(ILERI).

Atuou em 30 países, dos quais o Brasil onde trabalhou durante 10 anos, inclusive para o Governo do Estado de Pernambuco como especialista em desenvolvimento.

Trabalhou para ONGs no continente Africano como especialista em retomada econômica em zonas pós conflito.

Hoje é diretor de uma consultoria internacional especializada em ciências e engenharia social com intervenção no Burquina Faso, Costa do Marfim, Mali e Niger.

Correspondente para a França e a Europa para a radio CBN Recife.

Presidente da Assembleia do IFSRA (Institute for Social Research in Africa) 

Empreendedor social, palestrante e mentor pela organização internacional Make Sense

Consultor em inteligência estratégica e gestão de riscos para o setor empresarial. 

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