A Comunicação Distanciada das Academias com a Sociedade e os Movimentos Anti-cientificismo
- CERES

- há 14 minutos
- 6 min de leitura
É mais do que óbvio que a ciência constitui um pilar essencial das sociedades contemporâneas, contribuindo para o progresso tecnológico, para a formulação de políticas públicas e para a melhoria das condições de vida. Contudo, a relação entre academia e sociedade tem-se fragilizado progressivamente. A produção científica, cada vez mais especializada e tecnicamente complexa, tende a circular em espaços restritos, pouco acessíveis ao cidadão comum. Esta realidade favorece a disseminação de narrativas anti-científicas, impulsionadas pela desinformação, pela polarização sociopolítica e por uma crise mais ampla de confiança institucional.
Embora frequentemente associado ao presente, o anti-cientificismo não é um fenómeno contemporâneo. A resistência à ciência acompanha a história do pensamento humano desde épocas remotas. Um dos episódios mais emblemáticos é o conflito entre Galileu Galilei e a Igreja Católica, frequentemente recordado como símbolo da oposição histórica entre ciência e dogma.
Segundo Bourdieu (2004), a academia configura-se como um campo autónomo, regulado por lógicas internas próprias e por um sistema de reconhecimento específico. Tal estrutura, embora favoreça a produção de conhecimento rigoroso e altamente especializado, desincentiva a sua tradução para públicos não especializados.
Latour (2000), reforça esta percepção ao caracterizar a ciência como uma “caixa-preta”, cujo funcionamento interno permanece inacessível à maioria dos cidadãos. A terminologia técnica, aliada a metodologias complexas, contribui para uma imagem de elitização, reforçando a percepção de que o conhecimento científico se encontra distante das preocupações quotidianas da população.
Neste sentido, a comunicação científica, idealmente entendida como mediação e aproximação, mantém-se ainda predominantemente como um fluxo unidireccional, dos especialistas para o público. Autores como Bucchi e Jasanoff argumentam que este modelo ignora a diversidade sociocultural das comunidades e subestima o valor do diálogo participativo.
A literacia científica permanece desigual e insuficiente, sobretudo em contextos marcados por fragilidades no sistema educativo e pelo acesso limitado à informação qualificada. Esta desigualdade contribui para a cristalização de barreiras entre a ciência e o público, dificultando a interpretação adequada de dados, conceitos e resultados.
A linguagem hermética das produções científicas tem desempenhado um papel central no distanciamento entre o público e o mundo académico. Esta opacidade discursiva tem contribuído para a erosão do pensamento científico no espaço público, abrindo terreno ao “achismo”, frequentemente legitimado pela retórica da “liberdade de expressão”.
O afastamento linguístico e conceptual alimenta a percepção de um elitismo intelectual que exclui determinados grupos sociais e reforça desigualdades já existentes. Como resultado, as universidades enfrentam crescentes dificuldades em estabelecer um diálogo significativo com a sociedade. A desinformação prospera onde faltam clareza, proximidade e capacidade pedagógica.
Torna-se, portanto, epistemologicamente necessário que as instituições académicas deixem o seu “pedestal intelectual”, descomplicando jargões e tornando acessíveis conceitos fundamentais, de modo a reconstruir pontes sólidas com a sociedade.
Desinformação, Pseudoestudos e a Crise da Confiança Pública
A ausência de estratégias comunicacionais eficazes abre espaço para actores que divulgam estatísticas falsas, manipulam enviesamentos científicos e recorrem a pseudoestudos para validar discursos sem fundamento. A credibilidade aparente destes conteúdos convence sectores da população menos familiarizados com o rigor da investigação científica, contribuindo para a formação de opiniões desinformadas.
Diante desta situação, torna-se vital que a comunidade científica se torne mais presente e activa no debate público. A ignorância sobre o que constitui conhecimento factual favorece a exploração cognitiva e emocional dos cidadãos, perpetuando percepções distorcidas acerca da ciência e enfraquecendo a confiança nas instituições académicas.
O historiador e filósofo Leandro Karnal, em entrevista ao programa “Roda Viva” (TV Cultura), distingue duas manifestações contemporâneas do anti-cientificismo:
Anti-cientificismo hilário: Exemplo disso é o terraplanismo, que se caracteriza por distorções geométricas extremas e profunda ignorância epistemológica.
Anti-cientificismo radical: Envolve discursos que rejeitam vacinas, negam evidências médicas e podem configurar uma forma de crime público, na medida em que colocam vidas em risco com base em argumentos infundados.
Entretanto, o anti-cientificismo não manifesta-se apenas nestas duas formas, mencionadas pelo historiador, ela é multifacetada entre vários movimentos expressivos, nomeadamente o negacionismo climático, grupos conspiratórios pseudocientíficos, discursos anti-globalistas e a contestação à autoridade de peritos e instituições científicas. Portanto, a proliferação destes movimentos reflecte falhas na comunicação científica, mas também tensões sociais, económicas e políticas que intensificam a desconfiança pública na ciência institucional.
O Negacionismo como Expressão do Anti-cientificismo
O negacionismo actua, de forma particularmente incisiva, através da disseminação de fake news e de pseudo-ciência, contribuindo para a criação de um ambiente de desconfiança em relação ao conhecimento científico e aos factos históricos. Este fenómeno constitui um elemento de retrocesso social, na medida em que compromete a capacidade colectiva de interpretar a realidade de forma crítica, informada e baseada em evidências.
O conhecimento científico deve assentar em evidências verificáveis, sujeitas a crítica e validação pelos próprios métodos da ciência, bem como pela observação sistemática. Para que essa literacia científica se consolide, é fundamental que ela seja construída desde a escola, de modo a garantir a sua posterior difusão e fortalecimento no seio da sociedade.
Segundo Estevam (2023), o negacionismo designa um conjunto de práticas e comportamentos adoptados por indivíduos que rejeitam informações amplamente reconhecidas nos meios académicos e científicos. Trata-se de uma recusa consciente em aceitar conhecimentos consolidados pela investigação científica ou pela historiografia, mesmo quando sustentados por evidências robustas. Tal como refere a autora, esta postura caracteriza-se por uma tendência sistemática para negar a validade ou a veracidade de factos comprovados, sejam eles acontecimentos históricos ou dados científicos, substituindo-os por argumentos destituídos de fundamentação empírica ou documental.
Esta predisposição para distorcer deliberadamente os factos traduz-se numa ideologia marcada pela desconfiança generalizada, frequentemente instrumentalizada em contextos de manipulação informativa. Estevam (2023) sublinha ainda que atitudes negacionistas não são fenómenos recentes; têm raízes históricas profundas e consequências persistentes, associadas à construção de narrativas controladas e à alienação de grupos socialmente vulneráveis. Nesse sentido, o anticientificismo surge como uma estratégia destinada a promover desinformação e a ampliar desigualdades cognitivas.
A mesma autora observa que o movimento negacionista tende a apresentar-se sob a aparência de um alegado “anúncio do bem”, recorrendo a falácias e a distorções informativas que desafiam princípios científicos amplamente consolidados. Os seus defensores seleccionam temas de elevada complexidade para o público em geral e constroem, a partir deles, narrativas conspiratórias ou teorias sem sustentação empírica, apresentadas com forte apelo sensacionalista e intencionalmente persuasivo.
Para reforçar esta análise, Estevam (2023) cita a definição de Napolitano (2021, p. 98a), segundo a qual: “O negacionismo poderia ser definido como a negação a priori de um processo, evento ou fato histórico estabelecido pela comunidade de historiadores como efetivamente ocorrido no passado, em que pese várias possibilidades de interpretação validadas pelo debate historiográfico.”
Assim, o negacionismo contemporâneo assume, frequentemente, a forma de disputa ideológica, com capacidade para legitimar líderes com discursos anticientíficos e para influenciar de forma significativa a opinião pública. Em períodos de instabilidade política, social ou económica, este tipo de narrativa encontra terreno fértil para a sua expansão, apoiando-se em teorias conspiratórias, interpretações superficiais e argumentos sem rigor científico.
Em suma, o afastamento entre a ciência e a sociedade resulta da crescente especialização académica, da linguagem hermética e das fragilidades na literacia científica, factores que facilitam a desinformação e fortalecem o anti-cientificismo. O negacionismo evidencia como a manipulação informativa pode distorcer factos, gerar desconfiança e comprometer o bem-estar colectivo. Torna-se, por isso, essencial aproximar a ciência do público através de uma comunicação mais clara, acessível e participativa, reforçando a literacia científica e restaurando a confiança nas instituições do conhecimento.

Gomes Dias: Formado em Comunicação Social, pela Universidade Agostinho Neto (UAN). Tem pesquisa académica em torno das redes sociais, com ênfase no processo de ensino e aprendizagem; e Inteligência Artificial. É Director Institucional da Juventude Unida dos Países de Língua Portuguesa (JUPLP). É também membro associado júnior da Associação Angolana dos Profissionais de Comunicação Institucional (AAPCI). Pesquisador e membro do Conselho de Pesquisa do CERES.
Redes sociais:
Instagram: https://www.instagram.com/gomes_dias9/
Email: gomesdiasgd99@gmail.com
Referência Bibliográfica
Bourdieu, P. (2004). Os Usos Sociais da Ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Latour, B. (2000). Ciência em Ação: Como Seguir Cientistas e Engenheiros Sociedade Afora. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
Bucchi, M. (2015). O conhecimento público da ciência. Lisboa: Gradiva
Jasanoff, S. (2004). States of Knowledge: The Co-Production of Science and the Social Order. London: Routledge.
ALPENDRE, G. (2017) Fake News e as iniciativas mundiais para combater o fenômeno. Brasil, nov. Entrevista concedia por telefone à jornalista e coautora.
Valente, M. (2018). Fake News: A Nova Arma de Desinformação em Massa. Edições Sesc SP.
Estevam, H. F. S. (2023). Negacionismo e anti-cientificismo: impactos sociais e educativos [Trabalho final de mestrado]. Penedo, AL: Universidade.
Karnal, L. (2020). Entrevista no programa Roda Viva. TV Cultura. Disponível em: https://www.tvcultura.com.br/rodaviva





Comentários