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Houthis e a recente dinâmica de poder na geopolítica do Oriente Médio: parte 1

  • Foto do escritor: CERES
    CERES
  • 18 de abr.
  • 9 min de leitura

 Flávia Abud Luz


Na última semana de março de 2025 a política internacional foi palco de uma cena interessante e ao mesmo tempo incrivelmente inesperada: em uma conversa em um aplicativo de mensagens privado figuras-chave da política doméstica norte-americana trataram de um bombardeio contra posições houthis no Iêmen e não notaram que eles mesmos inseriram por acidente o editor chefe do The Atlantic como um dos membros do grupo. 


O fato em si, que até lembra de longe filmes sobre espionagem e contrainformação em contexto de guerra, teve grande repercussão na mídia internacional a partir do momento em que o próprio editor descobriu que os tais bombardeios que eram discutidos nas mensagens no grupo não só eram verdadeiros como ocorreram. A última parte em si que fez com que o jornalista e o mundo compreendessem a gravidade dos fatos: o grupo era real e os Estados Unidos estavam cada vez mais se inserindo nas dinâmicas de poder no Oriente Médio ao atacarem posições militares de um grupo iemenita que possui fortes conexões com o Irã e ao mesmo tempo tem utilizado da força para mostrar sua posição política na fase mais recente do conflito entre Israel e Palestina, intensificado a partir de outubro de 2023. 


Nos últimos anos, os Houthis emergiram como um ator influente e controverso da geopolítica do Oriente Médio. Originado no norte do Iêmen como um movimento religioso e político, o grupo se consolidou como uma força militar significativa após a eclosão da guerra civil iemenita em 2014. A tomada da capital Sanaa e o subsequente confronto com o governo reconhecido internacionalmente levaram a uma intervenção militar liderada pela Arábia Saudita, ampliando o conflito para uma disputa regional com envolvimento de grandes potências, como Irã e Estados Unidos. A ascensão dos houthis transformou o Iêmen em um campo de batalha estratégico, com implicações que vão além das fronteiras do país, afetando rotas comerciais, segurança marítima e alianças políticas no Golfo Pérsico.


Diante desse cenário, busco com o presente artigo discutir e entender o papel dos houthis na geopolítica atual, considerando os desafios e as dinâmicas do Oriente Médio, visto que o grupo não apenas desafia diretamente as potências regionais, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, mas também influencia a rivalidade entre Irã e Ocidente, tornando-se um agente fundamental no tabuleiro geopolítico da região. Além disso, os recentes ataques a navios no Mar Vermelho, atribuídos aos houthis, destacam a importância estratégica do movimento na segurança e no comércio global.  


Considerando a complexidade da análise, o artigo será dividido em duas partes. Esta, a primeira, trará discussões acerca das origens dos houthis no Iêmen, tais como as raízes ideológicas e religiosas, o processo de transformação do grupo em um ator político-militar e o papel desempenhado pelo mesmo no contexto da guerra no Iêmen, considerando a atuação feita pela Arábia Saudita. 


Um novo ator no cenário político-religioso no Iêmen 

Enquanto movimento político os houthis surgiu no cenário iemenita na década de 1990 como uma resposta ao crescente domínio de ideologias islâmicas sunitas e à marginalização da comunidade zaidita xiita no país. O movimento, fundado por Hussein Badreddin al-Houthi, um clérigo zaidita, defendia uma maior autonomia para os xiitas do norte e também se opunha à crescente influência saudita e ocidental no país. Inicialmente, o movimento se concentrava em questões religiosas e culturais, promovendo um retorno às tradições zaiditas e resistindo à disseminação do wahabismo, corrente islâmica sunita fortemente apoiada pela Arábia Saudita. 


Nesse ponto acredito que algumas explicações sejam importantes sobre as divisões internas no Islã e a ressonância quando falamos principalmente sobre a questão da representação política da comunidade xiita, explico. 


A cisão entre os xiitas e os sunitas, as duas principais cor rentes do Islã, data das crises relacionadas à sucessão do Profeta Maomé, que faleceu em 632 d.C., visto que não é unanimidade se o referido líder pode deixar instruções claras aos seus seguidores acerca de quem deveria ocupar seu lugar e, consequentemente, liderar e garantir a manutenção da comunidade holística dos muçulmanos: a umma. A principal controvérsia recaiu sobre a divisão entre os muçulmanos acerca do tema do exercício do comando do califado após Maomé: um grupo, posteriormente denominado de sunita (que designa “aquele que segue a normativa” – a sunna), acreditava que o exercício do poder deveria ser feito por meio da figura do Califa (“o sucessor”), uma pessoa eleita via processo político; enquanto que o outro grupo, denominado de xiita ou “partidários de Ali”, defendia a ideia de que a sucessão deveria ser circunscrita àqueles que pertencem à linhagem do profeta.


Embora os xiitas tenham argumentado que Ali ibn Abu Talib (primo e genro de Maomé) fosse o único dotado do direito de sucedê-lo, a umma foi conduzida por representantes denominados Califa (que em árabe significa “sucessor”), inicialmente indicados por um grupo de muçulmanos neutros (aqueles que formavam a primeira geração de muçulmanos, eram os “companheiros do Profeta”).  


Os xiitas desenvolveram uma relação e uma visão única da história do Islã que era diferente daquela que foi apresentada pelos sunitas ao longo dos séculos, ou seja, embora aspectos doutrinários como os cinco pilares do Islã e as fontes religiosas e de jurisprudência como o Alcorão e os ahadith fossem os mesmos, existiam ressalvas acerca de temas como a liderança dos imames (lideres políticos e religiosos). Assim, a própria corrente xiita apresentou, através dos séculos, divisões internas que conduziram ao estabelecimento de três linhas gerais: os xiitas duodecimais, os xiitas ismaelitas, e os xiitas zaiditas


Os duodecimais compõem o maior número entre o segmento dos xiitas, visto que estão presentes no Irã, Líbano, Iraque e Bahrein, e possuem como elemento definidor sua adesão  à doutrina do Imamato (que considera os imames como pessoas dotadas de algumas características que o diferenciariam dos demais líderes, tais como a sua infalibilidade em sua interpretação dos textos sagrados – o Alcorão e os hadith – devido ao conhecimento secreto e único que lhe teria sido transmitido por Deus) e a crença em um elemento escatológico, relacionado à crença de que o 12º Imame (oculto desde 873 d.C.) irá retornar e instaurar um governo de justiça e paz após alguns séculos de tirania e opressão, que permite, conforme assinala Campanini (2007), a projeção da política a uma dimensão transcendente. 


Já os ismaelitas, um movimento originário no Iraque e no Sudoeste do Irã, viam a sucessão dos Imames de forma diferente ao reconhecerem apenas sete deles (de Ali ibn Abu Talib até Ismail, o filho mais velho de Já’far al-Sadiq) e acreditavam que o filho do sétimo Imam, Muhammad al-Mahdi, seria o responsável pelo estabelecimento de um governo justo no mundo. Enquanto que os zaiditas, um ramo mais moderado do xiismo, argumentava que, na impossibilidade de o Imame ser um descendente da família do Profeta, era aceitável que aquele que carregasse tal título e influência fosse um muçulmano considerado digno, sob o ponto de vista ético, além de reivindicar seu direito à liderança e estar disposto a fazer oposição aos governantes que os xiitas considerarem ilegítimos. 


Mas retomando o foco aqui, o movimento político os houthis tem na figura do clérigo zaidita Hussein Badreddin al-Houthi a inspiração para as mudanças sociais no cenário iemenita, principalmente a defesa de uma maior autonomia para os xiitas do norte e a oposição à crescente influência saudita e ocidental no Iêmen. Inicialmente, o movimento se concentrava em questões religiosas e culturais, promovendo um retorno às tradições zaiditas e resistindo à disseminação do wahabismo, corrente islâmica sunita fortemente apoiada pela Arábia Saudita. 


Ao passar os anos, e sobretudo com a intensa atuação de Riad para conter as manifestações de grupos xiitas no Iêmen no contexto da Primavera Árabe (uma onda de protestos e revoluções populares que começou no final de 2010 na Tunísia e se espalhou por vários países do mundo árabe, principalmente no Norte da África e no Oriente Médio) os houthis passaram a se envolver mais ativamente na política nacional, confrontando o governo central do Iêmen, que apoiado por Riad sufocou as manifestações populares e foi uma espécie de peça na jogada das monarquias sunitas na região para a manutenção do status quo em meio a possibilidade de mudança promovida por tais manifestações.  


Em países do Golfo Pérsico, tais como a Arábia Saudita e o Bahrein, dinâmica de organização da segurança interna já se utilizava das divisões sectárias dos países como forma de garantir a legitimidade a políticas de governos autoritários. Desde o final da década de 1970 os governos de dos países do Golfo Pérsico tem buscado conter as suas populações xiitas, considerando que a movimentação que permitiu a chegada dos mesmos no poder no Irã pós-Revolução (1979) ascendeu um alerta com relação às referidas populações, seu interesse em ampliar a participação política interna e, sobretudo, as suas possíveis relações com os interesses iranianos na região ((TERHALLE, 2007).


Atuação dos houthis a partir dos anos 2000 e seus reflexos no contexto da Primavera Árabe 

No início dos anos 2000, o grupo era basicamente uma organização comunitária que promovia a educação religiosa, a valorização da cultura local e a resistência à marginalização do povo zaidita por parte do governo central iemenita. Além disso, o grupo também criticava a presença e influência dos Estados Unidos e de Israel na região, o que começou a atrair a atenção das autoridades iemenitas. A repressão do governo de Ali Abdullah Saleh contra o movimento, incluindo a morte de Hussein Badreddin al-Houthi em 2004, marcou o início de uma série de conflitos armados entre os houthis e as forças estatais. 


A partir de então, o movimento passou por uma profunda transformação: deixou de ser apenas um grupo religioso dissidente para se tornar um grupo militar organizado, com estrutura militar, poder territorial e ambições políticas. Em um período de quase dez anos (2004-2013) ocorreram seis confrontos diretos entre o movimento e o governo que permitiram aos houthis adquirir experiência de combate, armamento e apoio popular, especialmente entre à população iemenita que estava descontente com o regime de Saleh. 

Os confrontos ocorridos em 2009 selaram a ampliação da participação direta da Arábia Saudita no território iemenita em apoio à Saleh e ao mesmo tempo os houthis cruzaram a fronteira e atacarem alvos sauditas, ação tal que destacou a escalada do e suas implicações regionais, considerando os interesses de ambos os países em garantir a manutenção do poder e o status quo da região. 


Com a Primavera Árabe, em 2011, a instabilidade política no país criou uma oportunidade para os houthis ampliarem sua atuação. As manifestações populares no país, assim como nos demais países árabes, tinham como plano de fundo descontentamentos de ordem social, política e econômica relacionados ao desemprego, à corrupção e ao autoritarismo do presidente Saleh que, por sua vez, exercia o cargo desde 1978. 

A repressão violenta por parte das forças de segurança apenas intensificou os protestos, culminando em uma grave crise política e humanitária. Pressionado interna e externamente — inclusive por países do Golfo — Saleh acabou aceitando um plano de transição mediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e renunciou formalmente ao cargo em 2012 em troca de imunidade judicial. 


Apesar da saída de Saleh a transição política no Iêmen foi marcada por instabilidade, fragmentação do poder e insatisfação popular. O novo governo, liderado por Abd-Rabbuh Mansur Hadi, enfrentou alguns desafios, como, por exemplo, as tensões sectárias, a crise econômica, a presença de grupos armados e a falta de legitimidade política. Os houthis, já fortalecidos durante os confrontos anteriores com o governo, aproveitaram o vácuo de poder para expandir sua influência no âmbito nacional. Sentindo-se excluídos do processo político pós-Primavera Árabe, os Houthis intensificaram sua mobilização e, em 2014, tomaram a capital Sanaa. Assim, a Primavera Árabe iemenita acabou criando as condições para o colapso do Estado e a eclosão de uma guerra civil duradoura, que será apresentada e discutida na próxima parte do artigo. 


Ao longo do artigo busquei discutir e entender o papel dos houthis na geopolítica atual, considerando os desafios e as dinâmicas do Oriente Médio, visto que o grupo não apenas desafia diretamente as potências regionais, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, mas também influencia a rivalidade entre Irã e Ocidente, tornando-se um agente fundamental no tabuleiro geopolítico da região. 


O foco aqui recaiu sob o surgimento e desenvolvimento do movimento, considerando seus embates com o governo nacional e as implicações quando da intervenção saudita.  A consolidação dos houthis no cenário iemenita e no contexto regional trouxe uma série de desafios para as discussões sobre segurança internacional, estabilidade política e comercio internacional, este último considerando o impacto das ações do movimento ao controlar o estreito de Bab el-Mandeb. 


Referências 

ADDIN, Maysa Shuja. Yemen’s Houthis and former President Saleh: An Alliance of Animosity. Policy Alternative, Arab Reform Initiative, p. 1-10, 2016.

CAMPANINI, Massimo. O Pensamento Político Islâmico Medieval. In: SOUZA DE PEREIRA, Rosalie (org.). O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CLAUSEN, Maria-Louise. Competing for Control over the State: The Case of Yemen. Small Wars & Insurgencies, 29:3, p. 560-578, 2018.

TERHALLE, Maximilian. ARE THE SHIA RISING?. Middle East Policy, v. 14, n. 2, 2007.


Flávia Abud
Flávia Abud

  Flávia Abud Luz - Mini biografia 

Professora de Relações Internacionais. Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Esp. em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP.  Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". Integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades; e Direito à Educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas (UNIAN/SP).

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