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O que esperar de 2024? Um ano repleto de desafios!

No ano passado o meu primeiro artigo para o CERES trouxe algumas discussões sobre aspectos que acreditava serem essenciais para se observar no Irã ao longo do ano de 2023, considerado suas possíveis consequências. Destaquei naquele momento a necessidade de observar as mudanças que poderiam desencadear no país em si – a partir das manifestações populares iniciadas após a morte da jovem curda Mahsa Amini – e os reflexos no tabuleiro da política do golfo pérsico, sobretudo ao considerarmos a complexidade da dinâmica das relações Irã-Arábia Saudita, e no mundo, tendo como base o potencial do programa nuclear iraniano e as tentativas de contê-lo.


O contexto era marcado por uma sensibilização internacional com relação às manifestações iniciadas em setembro de 2022 em cidades como Teerã, Saqez (cidade natal de Amini) e tiveram como catalisador principal a morte da jovem curda Mahsa Amini poucos dias após sua detenção feita pela polícia da moralidade do país sob a acusação de que ela não estaria utilizando o hijab (véu islâmico que cobre os cabelos) de “forma correta, adequada”. teocrático (após insistir em tratar as manifestações como uma ameaça à segurança por meio da já clássica narrativa de confrontação contra o Ocidente como forma de deslegitimar as demandas de seus nacionais e inserir os protestos em uma lógica que não cabe mais para os dias atuais) teve que diminuir o tom de confronto e acabou por anunciar em dezembro de 2022 a dissolução da polícia da moralidade.


 Ainda em janeiro de 2023 o Irã foi foco de atenção por aspectos como a retomada da violência contra os manifestantes; a nova onda de repressão junto às mulheres por conta do dito “uso incorreto do véu”, que passou a envolver multas, medidas como a privação de acesso à determinados espaços – como lojas, restaurantes e até mesmo impedimento do direito de viagem. Além disso, surgiram as acusações de envolvimento de Teerã na guerra da Ucrânia (2022-atualmente), algo que lançou luz ao estreitamento dos laços entre Rússia e Irã, baseado em um apoio material de Teerã à Rússia com o envio de material bélico/militar, como drones, que teriam sido usados em diversos momentos contra a Ucrânia. Não é uma novidade que Rússia, Irã e China figuram no rol de países que são alvo de alguma forma de sanção internacional por questões como violações de direitos humanos, e buscam fazer um tipo de balanceamento da influência norte-americana no Oriente Médio e na Ásia. 


Novamente em 2024 estamos apenas em fevereiro e muitas peças do jogo geopolítico internacional já se movimentam de forma intensa; basta estarmos atentos às notícias sobre os conflitos em curso em Gaza que ao longo dos últimos meses escalou de forma intensa, causando a morte de milhares de civis – sobretudo mulheres e crianças – e trouxe à tona a necessidade de a comunidade internacional se manifestar e responsabilizar aqueles que infligem violência à referida população. Já observamos em janeiro a decisão da Corte Internacional de Justiça acerca da acusação de genocídio contra à população palestina feita pela África do Sul contra Israel trouxe uma resposta não tão enfática sobre a violência em curso, o que pode retomar uma discussão já recorrente nas relações internacionais acerca do papel das instituições no ordenamento do sistema internacional. Mais a frente retomarei esse ponto.   


O conflito mencionado terá implicações diretas não apenas para o Oriente Médio e Norte da África, mas também para as eleições norte-americanas, onde deveremos ver a reedição do embate Trump x Biden. Além disso, destaco aqui o conflito no Mar Mediterrâneo e o aumento das tensões entre potências ocidentais e o Irã.  


O ano de 2024 também será marcado por eleições em mais de 50 países ao redor do mundo, ou seja, os resultados dos referidos pleitos possuem um potencial de alterar as nossas definições de estabilidade.  


Israel x Palestina, África do Sul foi ao Tribunal Internacional de Justiça 


No dia 07 de outubro de 2023 o mundo recebeu a notícia de que integrantes do Hamas realizaram uma série de ataques em Gaza, vitimando em sua maioria civis. A série de ataques marcou um novo capítulo na escalada da violência relacionado ao conflito Israel e Palestina, cujas raízes histórica, política e ideológica se encontram ainda no final do século XIX e início do XX com a reivindicação territorial do movimento sionista. O referido movimento surgiu na Europa com o intuito de estabelecer um Estado judeu em um contexto de aumento de um sentimento antissemita, ou seja, a discriminação de povos com base em sua pertença religiosa – no caso judaica. A reivindicação territorial para o referido Estado tomou a forma de um projeto político-ideológico colonial que visava conseguir apoio de potências à época – como do Império Otomano, da Inglaterra e da França – como forma de legitimar a atuação de tomada de territórios. O apoio, por sua vez, veio substancialmente por parte de Inglaterra antes no final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) com a denominada Declaração de Balfour (1917) em que a potência europeia se comprometeu com o estabelecimento de um Estado judeu na Palestina, região que por conta das negociações secretas com a França no Acordo Sykes-Picot (1916). 


A reivindicação da Palestina por parte do movimento sionista deu início a um processo de migração de judeus e a retirada de população árabe local, algo que se intensificou até o momento em que a Inglaterra já não conseguiu mais lidar com as promessas feitas para árabes e judeus decidiu deixar o mandato da Palestina, fato que fez com que a Organização das Nações Unidas tomasse a frente das discussões acerca da partilha oficial da Palestina. Após a aprovação da Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas (1947) que formalizou a partilha em dois Estados – um árabe e outro judaico – ambos os lados questionaram as disposições da Resolução e as tensões aumentaram com a criação de Israel em 1948 e a subsequente expulsão e violências contra a população palestina: era a catástrofe (al-Nakba).  


 Ao longo das décadas a tensão gerada pela incompletude da criação de um Estado Palestino foi observada em conflitos como a Guerra dos Seis Dias – em 1967, principalmente com a tomada de Jerusalém, Cisjordânia e Gaza por parte de Israel e a demonstração de força contra países árabes –; e a Guerra do Yom Kippur (1973) em que a Síria e o Egito iniciaram um ataque surpresa com o intuito de questionar o poder israelense, um conflito que alterou o status quo da política no Oriente Médio com a assinatura dos acordos de paz de Camp David.  


A população palestina retirada de suas terras desde 1948 se encontrou em um impasse junto aos países vizinhos, explico: a principal dificuldade era o apoio para as reivindicações territoriais palestinas após as anexações de território feitas por Israel em meio ao desenvolvimento de ações violentas por parte de organizações como o OLP. O final da década de 1980 foi marcado por embates na Faixa de Gaza e na Cisjordânia entre palestinos e a administração israelense de ambos os territórios – era a primeira Intifada. A violência escalou rapidamente e pedras foram respondidas com diversas formas de violência bélica. O território de Gaza passou a ser governado de forma autônoma em 2006, com a retirada da força israelense da região, com o estabelecimento de um governo pelo Hamas após eleições legislativas. Embora tivesse a Autoridade Nacional Palestina (ANP) estabelecida no sentido de organizar o que seria o Estado Palestino os territórios da Cisjordânia continuaram a ter a influência direta de Israel. 


As últimas duas décadas mantiveram o padrão de continuidade com relação aos conflitos, ao aumento das violências e um embate de narrativas acerca das mesmas, o que pode ser observado em episódios como a Segunda Intifada; os confrontos entre as forças de Israel e o Hamas; confrontos nos campos de refugiados. Além disso, se somaram aos conflitos tensões políticas e diplomáticas como o que pareceu ser um aceno norte-americano na gestão de Donald Trump ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel. 


Desde os ataques ocorridos em outubro de 2023 a violência do embate entre as forças de defesa de Israel e palestinos, principalmente militantes e civis, aumentou e a tensão começou a transbordar para as fronteiras de Israel com o Líbano. Em dezembro a África do Sul foi ao Tribunal Internacional de Justiça com um caso que consistiu em considerar que o governo de Israel está promovendo um genocídio contra a população palestina desde que iniciou o que o governo israelense considera ser uma resposta aos ataques iniciados pelo Hamas. 


A atitude da África do Sul foi observada de perto pela comunidade internacional pois foi uma sinalização importante em meio à disputa de narrativas entre os dois lados do conflito. A base jurídica aqui foi a de exercer um direito enquanto país signatário da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio da ONU e atuar quando tal forma de violência for detectada. No caso, África do Sul trouxe o não cumprimento da Convenção por parte de Israel por conta dos bombardeios realizados e o cerco à população de Gaza. No final do mês passado o tribunal apresentou uma primeira decisão sobre o caso e a esperança era de que uma condenação mais veemente fosse feita e Israel tivesse que cessar suas operações em Gaza. 


Na referida decisão o tribunal não fez o chamamento para o cessar fogo e pediu para não Israel tomar medidas militares que pudessem ser consideradas genocidas, condenar pessoas envolvidas em tais ataques e garantir que a ajuda humanitária chegasse à população da Faixa de Gaza. Foi uma primeira apreciação sobre o caso movido pela África do Sul – visto que decisões em casos assim podem se estender por anos –, e apesar das decisões serem vinculantes para Estados que reconhecem formalmente a competência do tribunal (caso de Israel e África do Sul), nem sempre são seguidas, como observamos no caso da ação da Rússia contra a Ucrânia.  


Um desdobramento do capítulo mais recente do conflito entre Israel e a Palestina foi o envolvimento – direto ou indireto – de outros países por meio de apoio militar, financeiro ou político.  Os houthis, movimento político e militar iemenita da corrente xiita do islã, passaram a realizar uma série de ataques direcionados contra navios no Mar Mediterrâneo, região conhecida por concentrar mais de dois terços do volume de comércio marítimo mundial por duas principais frentes: a costa no Iêmen e o canal de Suez. Depois de um primeiro momento os militantes passaram a reivindicar tais ataques em nome de um apoio à causa palestina. Um aspecto relevante a ser apontado é o de que ao mesmo tempo os houthis também buscam apresentar um discurso de alinhamento com o Irã e, por sua vez, de uma resistência ao Ocidente e sua atuação na região do Oriente Médio e Norte da África. 


Embora o governo de Teerã não tenha assumido de maneira explícita seu envolvimento junto aos houthis o país tem sido constantemente apontado pelos Estados Unidos e Reino Unido como apoiador financeiro e militar dos militantes, algo que nos faz enquanto analistas observamos que estamos em mais um período de aumento das tensões entre Irã e alguns países do Ocidente, ação que conduz à construção de narrativas – por ambos os lados – sobre a relação “nós x eles” e à violência. Os Estados Unidos e o Reino Unido chegaram a realizar alguns ataques aéreos contra alvos houthis e argumentaram que o conflito promovido pelos referidos militantes no Mar Mediterrâneo não teria relação com a situação na Faixa de Gaza. A atuação militar conjunta na região desperta também um receio: um confronto mais direto com o Irã.  


Eleições nos Estados Unidos: discussões, apoio a Israel e primárias 


 2024 já teria uma importância muito grande para o mundo por conta das Eleições Presidenciais dos Estados Unidos tendo em vista os constantes questionamentos ao governo de Biden e a redução de seu apoio. Desde que os ataques de outubro de 2023 em Gaza vitimaram em sua maioria civis o governo norte-americano mostrou um contínuo apoio ao que se acredita ser o direito de Israel de responder aos ataques perpetrados pelo Hamas. 


O que parece estar em jogo agora para uma candidatura de Joe Biden é justamente o questionamento de parcelas da população americana acerca do apoio praticamente incondicional do país a Israel, apesar de todas as discussões que começaram a ser levantadas em sua maioria pela população civil e movimentos de apoio à Palestina ao redor do mundo acerca do uso desmedido de força pelas forças de Israel e principalmente pela morte de civis sem envolvimento em qualquer tipo de atividade ligada ao Hamas, como crianças, mulheres, idosos e pessoas que estavam em hospitais que foram alvo da resposta das forças israelenses.  


Uma pesquisa realizada de forma conjunta entre New York Times e Siena College já demonstrava em dezembro de 2023 que os jovens americanos eram mais críticos do que os eleitores mais velhos no que diz respeito à conduta da administração israelense e à política externa dos Estados Unidos para o conflito; principalmente pelo elevado número de mortes de civis palestinos. Além disso o próprio partido democrata está dividido com relação ao apoio norte-americano, o que demonstra uma dificuldade de Biden manter a coalizão que ele organizou nas últimas eleições.  


A reedição do embate Trump x Biden para ser incontestável aos americanos, visto que grande parcela dos eleitores manifestaram a vontade de votar em Trump caso ele seja o candidato republicano apesar dos processos que o mesmo enfrenta. Além disso, os juízes da Suprema Corte se tornaram peças importantes para determinar a possibilidade de Trump ser retirado ou não das cédulas de votação no Colorado e Maine, visto que ele foi acusado de violar a 14ª emenda da constituição norte-americana por cota de suas ações e omissões que conduziram aos ataques ao Capitólio em 06 de janeiro de 2021.  A decisão dos juízes a respeito do caso deve ser pública antes mesmo da chamada Super Terça, agora em março, quando os estados litigantes e outros treze vão às eleições primárias.   


A última vez em que a Corte teve um papel tão importante nas eleições presidenciais foi nos anos 2000, quando os juízes encerraram por 5 votos a 4 a disputa em favor do candidato republicano George W. Bush.  


As tensões entre Teerã e os Estados Unidos tiveram uma escalada ao longo dos últimos anos por episódios como a retirada (em 2018) do país americano de um acordo firmado em cooperação com Alemanha, França, Reino Unido, China e Rússia – e interlocução da Agência Internacional de Energia Atômica – que impunha restrições ao país persa, impedindo que fossem produzidas armas nucleares, e retirava algumas sanções internacionais em áreas como finanças e comércio como garantia. Embora algumas das cláusulas tivessem um tempo de existência determinado, como por exemplo a de dez anos que limitava a posse de urânio enriquecido, outras cláusulas eram garantiriam que o país deveria restringir seu conhecimento e tecnologia ao uso médico e industrial, fins considerados civis. Somado ao episódio mencionado, temos o conflito gerado por declarações de Trump de que reconheceria Jerusalém como capital de Israel; e mais recentemente o apoio norte-americano às ações de Israel na Faixa de Gaza e os ataques realizados em conjunto com o Reino Unido que tiveram como alvo posições houthis no Iêmen. 


O pano de fundo por trás de últimos dois pontos, ambos ocorridos entre o final de 2023 e o primeiro mês de 2024, é a retomada, por parte de potências ocidentais, de um discurso homogeneizante sobre os xiitas de forma geral, explico. A deposição do líder iraquiano Saddam Hussein e a posterior instabilidade gerada pela articulação para a mudança de regime fez com que os xiitas “ressurgiram” no ambiente político do Oriente Médio como uma ameaça por conta de três principais premissas acerca do papel e ambições iranianas como líder de tal processo na região, a saber: engajar as massas na região, construir um cinturão ideológico composto de governos xiitas próximos e expandir seu papel e poder regional. Tal noção captura a existência de interesses iranianos na região (e sim, não podem ser ingênuos em acreditar que elas não existem), porém desenvolve um discurso que não considera as diferenças e interesses das comunidades xiitas nos países em que se inserem. 


Ao longo do texto destaquei de maneira breve alguns dos aspectos que considero serem essenciais para se observar ao longo do ano, considerado suas possíveis consequências para a geopolítica internacional. A região do Oriente Médio e Norte da África é uma peça central para os desdobramentos geopolíticos de 2024 e dos próximos anos por conta das forças que se chocam lá, principalmente por conta da atuação dos Estados Unidos na região (com apoio a Israel ou atacando posições houthis no Iêmen) e de atores regionais, como o Irã e a Arábia Saudita que há muitos anos desenvolvem formas de alcançar uma espécie de equilíbrio de poder entre si.  



Flávia Abud Luz, Professora de Relações Internacionais. Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Esp. em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP.  Atualmente desenvolve pesquisa sobre o feminismo islâmico e movimentos sociais. Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". Integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Grupo de Estudos e Pesquisa em Migrações Internacionais - MIGREPI (UFABC); e Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades. 


Referências

BARZEGAR, Kayhan. Iran and The Shiite Crescent; Myths and Realities. The Brown Journal of World Affairs, vol XV, Issue I, 2008, pp.87-99.

BARZEGAR, Kayhan.The Balance of Power in Persian Gulf: an Iranian view. Middle East Policy, vl.XVII, n.3, 2010

HOUGHTON, Benjamin. China’s balancing strategy between Saudi Arabia and Iran: the view from Riyadh. Asian Affairs, v. 53, n. 1, p. 124-144, 2022.

MISLEH, Soraya. Al Nakba – Um estudo sobre a catástrofe palestina. São Paulo: Editora Sundermann, 2017.

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