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A legalização do aborto no Brasil e o Ciclo de Vida das Normas Internacionais

Atualizado: 26 de set. de 2023

O debate sobre a legalização e despenalização ampla da prática do aborto é, no Brasil, um tema sensível ao debate público ao implicar com questões morais e religiosas. Apesar do debate ético ter alcançado em diferentes países do mundo consensos relevantes, no Brasil o discurso não encontra espaço para ser difundido. Isto porque, apesar da prática ser legalizada para alguns casos específicos, o tema ainda não é tratado como um direito amplo à liberdade de escolha da mulher e consequentemente, indispensável para a saúde pública no geral.


Ainda que países próximos como o Uruguai, a Argentina e a Colômbia já tenham evoluído no aspecto legal e jurídico do tema, no horizonte brasileiro ainda não é possível vislumbrar o mesmo avanço progressista. Desde os últimos anos é possível notar claramente no país as reminiscências do conservadorismo cultural e político que tanto refletem a misoginia, a negação dos direitos humanos e a intolerância à diversidade. Por essa razão, torna-se inviável imaginar um cenário no qual o legislativo e o judiciário possam conceber a interrupção voluntária da gravidez como uma demanda de saúde pública que inclua todas as pessoas com capacidade biológica de engravidar, sem restrições quanto a motivações.


Como é possível, então, pensar em movimentos práticos em prol da legalização do aborto no país? A pergunta tem a intenção de refletir antes mesmo se existe tal possibilidade. Portanto, ainda que a resposta não seja simples, o que se pretende trazer no presente artigo é algo como um caminho das pedras quanto ao que poderia ser uma estratégia para o avanço legal do tema, apesar do perfil tradicionalista do país. Para tanto, utilizarei de dois exemplos de mudanças legislativas que seguirem a teoria do Ciclo de Vida das Normas Internacionais.


Primeiramente, em síntese, o Ciclo de Vida das Normas Internacionais está enquadrado dentro da teoria construtivista das Relações Internacionais. A tese construtivista tem como principal expoente o autor Alexander Wendt e, se propõe a pensar as relações como dependentes de suas estruturas sociais. Wendt estipula quatro aspectos que concebem a teoria: aceite da realidade e explícita importância da irreduzível e potencial inobservância das estruturas sociais que geram os agentes; em oposição aos funcionalistas, a teoria não busca razão ou consciência na motivação e intencionalidade humana; compreende-se o agente e a estrutura em uma síntese dialética, sem considerar a subordinação recíproca, tendo, portanto, tanto aspectos do individualismo quanto do estruturalismo; argumenta-se que as estruturas sociais são inseparáveis do espaço-tempo e que este conceito deve, portanto estar explícito no âmbito teórico e concreto da pesquisa social (WENDT, 1987).


Assim, interesses estatais poderão ser determinados por todos os contextos estrutural e institucional em que um Estado participa. Para as autoras Martha Finnemore e Kathryn Sikkink, o Ciclo de Vida das Normas Internacionais ocorre quando agentes movidos por uma ideia se utilizam de plataformas organizacionais para persuadir e levantar debates acerca de uma demanda particular frente a Estados, organizações internacionais e outras redes. Utilizando-se da legitimação destes últimos atores, os agentes pretendem institucionalizar suas demandas por meio de acordos, convenções, tratados e resoluções que são formalizados internacionalmente.


Ao final de um ciclo, agentes do direito e burocratas por vias da conformidade com órgãos internacionais terminam por institucionalizar internamente as normas referentes às demandas levantadas. Um primeiro exemplo prático de internalização normativa através deste procedimento foi a criminalização da homofobia no Brasil. Com dificuldades em tramitar a questão internamente por conta da intransigência do Congresso Nacional, o Brasil, fomentou mediante sua política externa a aprovação a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância em pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2013, na Guatemala.


Nessa Convenção, os Estados-membros não só condenam as diversas formas de discriminação, mas também concordam em implementar políticas públicas com objetivo de erradicar esse problema. Os Estados comprometem-se ainda a adotar medidas legislativas com sanções cabíveis, como derrogarem leis desfavoráveis; zelar para que as autoridades públicas não tolerem esse tipo de discriminação e tomar recursos apropriados para que o particular também não o viole. Assim, o país comprometeu-se internacionalmente com o documento e assumiu a responsabilidade de atuar ativamente em prol deste.


A partir da Convenção, o Supremo Tribunal Federal prontificou-se a tipificar a homofobia enquanto crime em 2019, como um paralelo com a Lei n.º 7.716, de 1989 (lei esta que tipifica o racismo enquanto crime), através da Ação Direta de Inconstitucionalidade número 26 (ADO 26), até que sobrevenha lei emanada pelo Congresso Nacional. Os ministros corroboram com a ideia de que o legislativo retém a discussão de termas relacionados à comunidade LGBT visto que o Projeto de Criminalização da Homofobia (Lei da Câmara n.º 122 de 2006) nunca adentrara em reuniões de discussão e fora posteriormente arquivado em 2014. Assim, apesar da morosidade, foi possível, enfim, classificar a homofobia enquanto crime no Brasil graças à pressão internacional dada a participação do país na OEA[1].


Debruçando-se sobre este caso pode-se influir que a participação do Brasil junto à Organização dos Estados Americanos amplia a interferência das estruturas normativas internacionais na construção social dos interesses e comportamentos do país. Dessa, forma, observa-se a importância da crescente internacionalização de países como forma de fomento e garantia à movimentos progressistas. A mesma organização foi ainda essencial para a sanção da Lei n.º 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, cujo objetivo é proteger mulheres da violência doméstica e familiar.


Enquanto segundo exemplo prático do Ciclo de Vida das Normas Internacionais, a Lei Maria da Penha tomou forma a partir da condenação do Estado brasileiro por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após sofrer violência e tentativas de homicídio por parte de seu ex-marido, Maria da Penha escreveu um livro e, posteriormente, levou seu caso ao Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Estas organizações puderam então encaminhar seu caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos em 1998.


O Brasil à época já participava da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) e, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. Ainda assim, foi necessária uma condenação em 2002 estabelecendo o compromisso do país em reformular as suas leis e políticas em relação à violência doméstica para que as políticas públicas de proteção à violência doméstica fossem implementadas. O Brasil, enquanto Estado-membro da CEJIL, da CLADEM e, tendo reconhecida a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, através da aprovação do Decreto Legislativo n.º 89., acatou a decisão e mobilizou-se internamente a fim de fazer valer as orientações impostas como sanção ao caso.


Nesse sentido, o que se pretende apresentar por hora é a relevância da participação internacional como meio de se observar como os agentes são socialmente construídos e constrangidos pelos próprios contextos e estruturas a que participam. A inserção do Brasil na comunidade internacional permite que questões de direitos humanos, por exemplo, possam ser asseguradas a partir de compromissos firmados pelo próprio Estado através de sua política externa. Assim, tomando-se a perspectiva construtivista das Relações Internacionais, torna-se possível observar por um viés sociológico a dialética entre agentes e estruturas sociais e como eles se constroem simultaneamente.


A construção das estruturas sociais ao nível internacional poderia então ser um caminho para a formalização da norma nacionalmente através da mobilização de agentes. O Brasil, por exemplo, participa do Consenso de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento, adotado em 2013, durante a Conferência Regional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, realizado no Uruguai. No documento são oferecidas diferentes recomendações acerca de políticas e programas para promoção da saúde sexual e reprodutiva, da igualdade de gênero e do desenvolvimento sustentável.


Dentre as medidas apontadas, a Medida Prioritária de número 40 no documento menciona o compromisso com a prevenção e impedimento do aborto inseguro e, o assessoramento e atenção integral quanto a gravidez não desejada ou não aceita. O mesmo ponto observa como indicador para análise dos países-membros a situação legal do aborto. Em outras seções, o documento aborda as recomendações e parâmetros a serem observados nos casos de países em que o aborto já é legalizado ou está despenalizado na legislação nacional.


O Brasil participa ainda do Consenso de Brasília, adotado em 2010 durante a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento da América Latina e do Caribe, realizada no Brasil. O documento cita a necessidade de revisão de leis que preveem medidas punitivas às mulheres que tenham cometido aborto e aponta a importância de garantir a realização do aborto em condições seguras em todos os casos autorizados por leis nacionais. Os documentos não possuem caráter vinculante, mas delineiam um caminho progressista ao debate.


O debate internacional seria, portanto, uma forma de discutir os impedimentos internos para a legalização do aborto. Nenhum documento regional até o momento busca objetivar o consenso pela legalização do aborto. Entretanto, há contornos em organismos regionais apresentando o tema como inerente à saúde reprodutiva. Além disso, convém destacar que a Organização Mundial da Saúde interpreta o aborto como essencial para a definição da saúde enquanto bem-estar físico, mental e social. A organização concebe ainda como fundamental a oferta e atenção a mulheres e meninas ao aborto livre de discriminação a fim de se alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS-, número 3, Saúde e Bem-estar e, ODS 5, igualdade de gênero.


Sendo assim, é possível afirmar que internacionalmente o tema alcança debates importantes que, por fim, poderão servir de contornos para a formalização interna da legalização. A atenção a resoluções e debates de órgãos internacionais e a provocação destes por partes de agentes apresenta um histórico de movimentação das estruturas internas. Dentro destes delineamentos torna-se possível imaginar um caminho potencial para a viabilidade da legalização do aborto no Brasil.



Helena Andrade Teixeira Azevedo

Internacionalista formada pela Universidade Federal Fluminense com ênfase em Gestão de Projetos e Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas. Analista, pesquisadora e redatora com interesse nas áreas de comunicação política, cooperação internacional e direitos humanos. Atualmente atua como Analista de Proteção de Marcas pela React, organização internacional sem fins lucrativos.

Referências

BBC News Mundo. Aborto en América Latina: en qué países es legal, está restringido o prohibido. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-45132307. Acessado em 21 de março de 2023.

CEPAL. Consenso de Montevideo, 2013. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/21835-consenso-montevideo-poblacion-desarrollo. Acessado em 27 de março de 2023.


CEPAL. Consenso de Brasília, 2010. Disponível em: https://www.cepal.org/notas/66/documentos/ConsensoBrasilia_ESP.pdf. Acessado em 25 de março de 2023.


CEPAL. Guía operacional para la implementación y el seguimiento del Consenso de Montevideo sobre Población y Desarrollo, 2015. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/38935/S1500860_es.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acessado em 27 de março de 2023.


FUNDO BRASIL. Lei Maria da Penha: história e fatos principais. Disponível em: https://www.fundobrasil.org.br/blog/lei-maria-da-penha-historia-e-fatos-principais/?gclid=CjwKCAjw_YShBhAiEiwAMomsEF1gEhd5fOURcXBKuhSNwNei0MN82bFljIXq65cwAJrSoUz3hJuqEBoCFRQQAvD_BwE. Acessado em 26 de março de 2023. Acessado em 27 de março de 2023.


GIMENES, Erick. Corte IDH julga pela primeira vez caso sobre direito ao aborto. Disponíel em: https://www.jota.info/justica/corte-idh-julga-pela-primeira-vez-caso-sobre-direito-ao-aborto-27032023. Publicado em 27/03/2023. Acessado em 28 de março de 2023.

LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raisa D.; FONSECA, Priscila Silva. O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022. DOI: 10.5380/rinc. v9i1.85017

Martha Finnemore and Kathryn Sikkink (1998). International Norm Dynamics and Political Change. International Organization, 52, pp 887-917 doi:10.1162/002081898550789


Organização Mundial da Saúde. Aborto. Disponível em: https://www.who.int/es/health-topics/abortion#tab=tab_1. Acessado em 27 de março de 2023.

[1] Após estas tramitações, a Convenção fora aprovada pelo congresso em 2021 e finalmente promulgada em 2022 pelo executivo, conforme o rito exposto no artigo 5º, parágrafo segundo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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