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Houthis e a recente dinâmica de poder na geopolítica do Oriente Médio: parte 2

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    CERES
  • há 21 minutos
  • 9 min de leitura

Nos últimos anos, os Houthis emergiram como um ator influente e controverso da geopolítica do Oriente Médio. Originado no norte do Iêmen como um movimento religioso e político, o grupo se consolidou como uma força militar significativa após a eclosão da guerra civil iemenita em 2014. A tomada da capital Sanaa e o subsequente confronto com o governo reconhecido internacionalmente levaram a uma intervenção militar liderada pela Arábia Saudita, ampliando o conflito para uma disputa regional com envolvimento de grandes potências, como Irã e Estados Unidos. A ascensão dos houthis transformou o Iêmen em um campo de batalha estratégico, com implicações que vão além das fronteiras do país, afetando rotas comerciais, segurança marítima e alianças políticas no Golfo Pérsico.


Diante desse cenário, busco com o presente artigo discutir e entender o papel dos houthis na geopolítica atual, considerando os desafios e as dinâmicas do Oriente Médio, visto que o grupo não apenas desafia diretamente as potências regionais, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, mas também influencia a rivalidade entre Irã e Ocidente, tornando-se um agente fundamental no tabuleiro geopolítico da região. Além disso, os recentes ataques a navios no Mar Vermelho, atribuídos aos houthis, destacam a importância estratégica do movimento na segurança e no comércio global.  


O artigo foi dividido em duas partes. A primeira, trouxe discussões acerca das origens dos houthis no Iêmen, tais como as raízes ideológicas e religiosas, o processo de transformação do grupo em um ator político-militar e o papel desempenhado pelo mesmo no contexto da guerra no Iêmen, considerando a atuação feita pela Arábia Saudita. 


Já nessa segunda parte eu busco discutir o fortalecimento dos houthis no cenário iemenita no contexto do conflito civil de 2014; o estabelecimento de relações com aliados regionais como o Irã; o impacto da ação do movimento ao tomar o controle do estreito de Bab el-Mandeb e impacto no comércio global; e, por fim, mas não menos importante, o envolvimento do movimento na mais recente etapa do conflito Israel-Palestina, considerando o bombardeio de posições norte-americanas e israelenses, bem como o recente bombardeio executado pelos Estados Unidos no final de março de 2025.  



Da Primavera Árabe à Guerra Civil no Iêmen 


Com a Primavera Árabe, em 2011, a instabilidade política no país criou uma oportunidade para os houthis ampliarem sua atuação. As manifestações populares no país, assim como nos demais países árabes, tinham como plano de fundo descontentamentos de ordem social, política e econômica relacionados ao desemprego, à corrupção e ao autoritarismo do presidente Saleh que, por sua vez, exercia o cargo desde 1978. 


A repressão violenta por parte das forças de segurança apenas intensificou os protestos, culminando em uma grave crise política e humanitária. Pressionado interna e externamente — inclusive por países do Golfo — Saleh acabou aceitando um plano de transição mediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e renunciou formalmente ao cargo em 2012 em troca de imunidade judicial. 


Apesar da saída de Saleh a transição política no Iêmen foi marcada por instabilidade, fragmentação do poder e insatisfação popular. O novo governo, liderado por Abd-Rabbuh Mansur Hadi, enfrentou alguns desafios, como, por exemplo, as tensões sectárias, a crise econômica, a presença de grupos armados e a falta de legitimidade política. Os houthis, já fortalecidos durante os confrontos anteriores com o governo, aproveitaram o vácuo de poder para expandir sua influência no âmbito nacional. Sentindo-se excluídos do processo político pós-Primavera Árabe, os houthis intensificaram sua mobilização e, em 2014, tomaram a capital Sanaa. Assim, a Primavera Árabe iemenita acabou criando as condições para o colapso do Estado e a eclosão de uma guerra civil duradoura, que será apresentada e discutida na próxima parte do artigo. 


Em setembro de 2014, os houthis surpreenderam a comunidade internacional ao avançarem militarmente sobre a capital do Iêmen, Sanaa. Aproveitando-se da fraqueza do governo de Abd-Rabbuh Mansur Hadi e do descontentamento popular com as medidas de austeridade econômica impostas pelo governo do mesmo, o grupo iniciou protestos massivos e, em paralelo, uma campanha militar rápida. Em poucos dias, os houthis conseguiram ocupar edifícios governamentais, instalações militares e órgãos de comunicação, praticamente sem resistência. 


Tal movimento apenas foi possível em parte devido à aliança tática com forças leais ao ex-presidente Ali Abdullah Saleh, que buscava retomar sua influência após ter sido removido do poder. Essa convergência de interesses, que antes parecia pouco possível devido ao histórico de confrontos do grupo contra Saleh e suas forças, facilitou a ascensão dos houthis como força dominante na capital. 


A tomada de Sanaa representou uma virada decisiva na política iemenita: o governo de Hadi foi forçado a fugir – inicialmente para a cidade de Áden e depois para o exílio na Arábia Saudita –, enquanto os houthis, por sua vez, passaram a controlar os principais centros políticos e militares do país, desafiando a legitimidade do Estado reconhecido internacionalmente. 


A ascensão do grupo foi vista por seus apoiadores como uma espécie de revolução popular contra a corrupção e a influência externa, porém seus opositores trataram tal ação como um golpe de Estado financiado e apoiado pelo Irã. O episódio em si marcou o início oficial da guerra civil iemenita, considerando que dividiu o país entre o governo de Hadi e o novo governo liderado pelos houthis e apoiado por setores do exército e pela população do norte do país, região em que as atividades do grupo se iniciaram ainda na década de 1990. 

O conflito civil teve reverberações internacionais com o governo iemenita (de Hadi) reconhecido pelas Nações Unidas como legítimo, ação essa que permitiu o desenvolvimento de uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita para intervir no conflito. Cabe ressaltar aqui que não foi a primeira vez em que forças sauditas se envolveram no país, porém dessa vez tal ação tinha o selo oficial de lidar com o conflito, tornando-a justificada. 


Os houthis consolidaram seu domínio sobre o norte do país e buscaram estabelecer estruturas administrativas próprias, inclusive reativando ministérios e organismos estatais sob sua gestão. Enquanto isso, o governo de Hadi buscou recuperar o controle do país a partir do sul do país, visto que na região contava com o apoio de milícias locais, tribos aliadas e tropas estrangeiras. 


A intervenção saudita ocorreu em maço de 2015, quando temendo a crescente influência dos houthis e seu suposto vínculo com o Irã, lançou a Operação Tempestade Decisiva, liderando uma coalizão árabe que incluiu países como Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Egito, Sudão.  O objetivo declarado da coalizão era restaurar o governo de Hadi e impedir que os houthis controlassem todo o Iêmen, a intervenção começou com intensos bombardeios aéreos contra posições dos houthis e infraestrutura estratégica. Porém, com o tempo as forças terrestres também foram mobilizadas, e milícias locais pró-governo passaram a ser treinadas e armadas por países da coalizão, aspectos que comprovavam novamente a escalada regional do conflito civil iemenita. Apesar da superioridade aérea e financeira da coalizão, os houthis conseguiram manter o controle de Sanaa e de boa parte do norte do país.


A intervenção realizada pela ação saudita, inicialmente prevista como uma ação rápida, acabou se transformando em uma guerra prolongada, marcada por inúmeras violações dos direitos humanos e uma grave crise humanitária. A atuação regional, antes vista como intervenção pontual, passou a ser analisada como uma guerra por procuração entre Arábia Saudita e Irã, considerando os houthis como peça central dessa disputa regional.  


Novo ator, novas alianças e antigos rivais 


O apoio do Irã aos houthis talvez seja um dos pontos mais controversos e estratégicos do conflito iemenita. Embora Teerã e o grupo neguem uma aliança formal e direta, existem fortes indícios — apontados por especialistas e serviços de inteligência — de que o Irã fornece suporte técnico, logístico e militar aos houthis. Esse apoio incluiria elementos como o treinamento, os armamentos (como mísseis balísticos e drones) e a consultoria estratégica, além de respaldo político e diplomático em fóruns internacionais. O Irã enxergaria, assim, nos houthis uma forma de projetar seu poder na Península Arábica, em especial próximo à fronteira saudita e ao estratégico estreito de Bab al-Mandeb, por onde passa parte significativa do comércio global de petróleo. 


Nesse sentido, é possível observar que estaríamos novamente assumindo uma retórica que parte das rivalidades entre xiitas e sunitas no Oriente Médio e passou a ser muito utilizada no período posterior à queda de Sadddam Hussein no Iraque. Tal retórica é denominada crescente xiita, ou seja, um entendimento segundo o qual existiria uma ameaça regional – nos âmbitos ideológico e político – em curso por conta da quantidade de grupos ou movimentos xiitas que estariam ligados aos desígnios do Irã. A ideia encontrou ressonância em países como o Egito e a Arábia Saudita e passou a ocupar a agenda de segurança do Oriente Médio, sobretudo dos países da região do Golfo Pérsico que governados majoritariamente por elites sunitas temiam uma mudança no status quo de seus países por meio da retirada das classes políticas dominantes. 


Assim, toda discussão sobre relação entre Irã e houthis também se insere no contexto da rivalidade regional entre Irã (potência xiita) e Arábia Saudita (potência sunita), que travam disputas indiretas por influência em países como Síria, Líbano, Iraque e, no caso do Iêmen, com impacto direto. A aliança com os houthis incomodou profundamente Riad e Washington, pois parte da narrativa da crescente xiita e de um dito temor com relação à segurança regional pois nesse sentido o Irã estaria cercando seus rivais com aliados estratégicos. Mesmo que os houthis mantenham autonomia em muitas decisões e não sejam simples "proxies" de Teerã, o apoio iraniano tem sido vital para sua resiliência militar e para manter o norte do Iêmen fora do controle da coalizão saudita. 


Ainda na pauta das alianças regionais e sua agenda, os Emirados Árabes Unidos (EAU), que também participaram da coalizão liderada pelos sauditas no Iêmen, tiveram uma abordagem distinta. Embora inicialmente compartilhassem o objetivo de conter os houthis, os Emirados passaram a priorizar seus próprios interesses estratégicos, especialmente no sul do Iêmen. Nesse sentido apoiaram o Conselho de Transição do Sul (CTS), um grupo separatista que busca a independência do sul do país. Essa duplicidade de agendas criou tensões dentro da própria coalizão, levando a choques entre forças apoiadas por Riad e por Abu Dhabi. Ao longo do conflito, os EAU reduziram sua presença militar direta, mas continuam influentes por meio de milícias locais, portos estratégicos e bases navais, demonstrando que o Iêmen se tornou um tabuleiro de múltiplos jogos de poder.  


O fortalecimento dos houthis no contexto regional também trouxe um elemento de preocupação mais amplo: o controle do estreito de Bab el-Mandeb e impacto no comércio global, ou seja, a ação do movimento em uma rota marítima que é uma das principais passagens do comércio global, por onde transita uma grande quantidade do petróleo exportado do Golfo para a Europa e a Ásia. 


Ainda no contexto da guerra civil iemenita os houthis passaram a promover ataques contra navios — especialmente em resposta a ações da coalizão entre os Estados Unidos e o governo saudita —, fato que demonstrou como a segurança da navegação nas rotas que passam pelo Mar Vermelho e Golfo de Áden era uma preocupação real; fato que fez com que países e empresas a redirecionarem navios, aumentando custos e prazos logísticos. 


Houthis no contexto da fase recente do conflito entre Israel e Palestina


O envolvimento do movimento na mais recente etapa do conflito Israel-Palestina está relacionado aos ataques contra alvos relacionados a Israel e aos Estados Unidos pois embora o Iêmen esteja geograficamente distante do centro do conflito a ação dos houthis possui como justificativa a solidariedade à Palestina e o entendimento de que Israel seria um rival em comum. Essa postura visava tanto fortalecer a legitimidade do movimento iemenita entre setores da opinião pública árabe quanto reafirmar sua posição como ator regional de relevância dentro do bloco de resistência à Israel.


Em dezembro de 2024 o porta voz dos houthis fez um pronunciamento em que reivindicou um ataque de misseis feito à Israel, ação essa que gerou uma série de bombardeios às infraestruturas críticas iemenitas, tais como o porto de Hodeida e instalações de energia. 


Os Estados Unidos aumentaram sua presença naval na região e realizaram ataques aéreos contra posições houthis, alegando legítima defesa de seus interesses e da liberdade de navegação. E em uma ação mais recente, em março de 2025, os Estados Unidos organizaram uma série de bombardeios que atingiram as cidades de Saada e Hodeida; um ato que chamou a atenção do mundo não apenas pelo ato, mas pela controvérsia relacionada à ele: o fato de que a comunicação interna de figuras de alto escalão na Segurança Nacional norte-americana chegou ao conhecimento do editor da The Atlantic. Poucos dias após os fatos descritos na comunicação acontecerem os ataques, o editor decidiu vir a publico e expor a comunicação.  Se algo ficou evidente nesse contexto foi que os houthis definitivamente se consolidaram como um atore de relevância regional, não podendo ter o seu poder militar e de influência desconsiderados. 


Ao longo do texto busquei discutir e entender o papel dos houthis na geopolítica atual, considerando os desafios e as dinâmicas do Oriente Médio, visto que o grupo não apenas desafia diretamente as potências regionais, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, mas também influencia a rivalidade entre Irã e Ocidente. Considerando esse novo ator precisamos estar atentos ao próximos desenvolvimentos no tabuleiro geopolítico da região.  



Referências 

ADDIN, Maysa Shuja. Yemen’s Houthis and former President Saleh: An Alliance of Animosity. Policy Alternative, Arab Reform Initiative, p. 1-10, 2016.

CLAUSEN, Maria-Louise. Competing for Control over the State: The Case of Yemen. Small Wars & Insurgencies, 29:3, p. 560-578, 2018.



Flávia Abud Luz
Flávia Abud Luz

  Flávia Abud Luz - Mini biografia 

Professora de Relações Internacionais. Doutora em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Esp. em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP.  Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". Integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades; e Direito à Educação, Direitos Humanos e Políticas Públicas (UNIAN/SP).


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